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Um rio nunca é o mesmo

Renato Sabbatini

No confucionismo, que é um misto de filosofia e religião oriental, existem frases e metáforas preciosas, que são verdadeiras lições de vida. Uma das mais profundas é que, ao mergulharmos nossas mãos duas vezes seguidas em um rio, nunca as estamos mergulhando no mesmo rio (o filósofo grego Heráclito também tem um pensamento na mesma linha). Ou seja: o fator tempo muda de forma reversível um objeto ou entidade, e o que pensamos ser a mesma coisa, só porque tem o mesmo nome, na realidade é algo em fluxo continuo de mudança.

Naturalmente, isso foi dito muito antes que o cientista ocidental Albert Einstein tivesse imortalizado, em sua famosa Teoria da Relatividade, o conceito de que o tempo também é uma dimensão, assim como as três dimensões do espaço. A isso, ele chamou de contínuo espaço-tempo, e é uma aplicação genialmente simples de um fato já conhecido em sua época, qual seja, o de que velocidade das ondas eletromagnéticas não é infinita.

Para imaginar como esse conceito é revolucionário e anti-intuitivo, vamos fazer um pequeno exercício. Em uma noite estrelada, contemple um pouco a deslumbrante abóbada celeste, com seu número incontável de estrelas e galáxias (em apenas um dos cantinhos minúsculos do céu, descoberto pelo telescópio espacial Hubble, os astrônomos estimaram recentemente haver cerca de 2 bilhões de galáxias, cada uma com 4 a 5 bilhões de estrelas cada uma...)

Pois bem, uma coisa que as pessoas raramente pensam, é que esta imagem que estamos vendo não existe mais. São fantasmas de uma era que já passou. Ela não é nem ao menos um retrato instantâneo do universo visível. É uma mistura fantástica e incalculável de fantasmas de poucos anos de idade a alguns bilhões de anos de idade. Sim, porque cada ponto de luz que enxergamos, representa um facho de luz que, por ser uma onda eletromagnética, e ter a velocidade máxima de 300 mil quilômetros por segundo, "saiu" da estrela que o gerou há muito tempo atrás. Quanto tempo atrás ? Depende, é claro, da distância dessa estrela da Terra.

Recentemente, quando o mesmo telescópio Hubble visualizou a gigantesca nuvem remanescente da explosão de uma estrela (uma supernova, como os astrônomos a denominam), estávamos contemplando um evento violento, que ocorrera há 10 mil anos atrás ! Mesmo se quisermos, é absolutamente impossível conhecermos o estado atual ou a imagem de uma estrela, por mais próxima que ela esteja de nós. Existem estrelas que estão a 2 ou 3 anos-luz de distância da terra (ano-luz é a distância que leva para um raio de luz percorrer durante um ano), existem galáxias inteiras que estão a 2 ou 100 milhões de anos-luz, e existem também galáxias, já detectadas, que estão a 4 ou 5 bilhões de anos-luz de distância da Terra...

Portanto, pode ser que milhões dessas estrelas que aparecem em nossos céus, hoje, já tenham desaparecido, mudado de cor ou de tamanho. Não tem como ficarmos sabendo. Nossa percepcão do universo visível é, então, uma coisa muito próxima ao rio confucionista, só que muito mais "pirante". A velocidade da luz coloca limites intransponíveis ao nosso conhecimento, a não ser que a ciência derrube esse dogma da física, e que prove que a luz das estrelas podem tomar "atalhos" no continuo espaço-tempo, que a faça chegar mais depressa até nós. Mas eu acho isso bastante improvável. É mais um brinquedo da física teórica do que propriamente um fato concreto.

Uma conseqüência importante de tudo isso é o que o fisico e divulgador científico inglês Paul Davies chamou de impossibilidade física da existência de Deus. De acordo com a teoria da relatividade, é impossível Deus ser onipotente, onipresente e onisciente. Haveria duas alternativas: ou ele está em um ponto fixo do Universo (e portanto, como nós, não consegue saber o que está acontecendo de verdade e naquele momento em um ponto distante Dele), ou ele está espalhado por todo o Universo (e nesse caso, ele não conseguiria transmitir o seu conhecimento de uma parte para outra do Universo). Concordo que os mistérios Dele pode ser insondáveis para nossa ínfima e imperfeita razão humana, mas não deixa de ser tentador especular sobre isso. Alguns teólogos argumentam que a limitação da velocidade da luz "não se aplica" para Deus. Mas será que Ele viola as leis físicas que regem o Universo, que Ele mesmo criou ?

É um dilema no mínimo interessante....

Veja a seqüencia deste artigo. "O Finito e o Infinito"
 


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  12/4/97.

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