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"Cobaias humanas" e Experimentação Médica

 

Renato Sabbatini

Infelizmente, mais uma vez a área médica da Unicamp, um dos melhores centros de pesquisa do país, cai sob o escrutínio da mídia e das autoridades devido a supostos problemas éticos. Foram feitas acusações de que as normas de experimentação em seres humanos determinadas pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Federal de Medicina foram desrespeitadas por pesquisadores em farmacologia da Faculdade de Ciências Médicas e do Hospital das Clínicas. Mais uma vez a imprensa utilizou termos pejorativos como "cobaias humanas" para caracterizar a situação, de uma forma, a meu ver, precipitada e injusta.

É preciso entender que a pesquisa científica médica trouxe imensos benefícios à humanidade (praticamente 100% de todas as descobertas de novos tratamentos médicos, grandes ou pequenos, exigiram em um determinado momento a experimentação em voluntários humanos), mas também provocou imensos dilemas do ponto de vista ético e moral. Por isso, foram criados muitos códigos de ética com o objetivo de orientar os pesquisadores, como os de Nuremberg, em 1945 e de Helsinki, em 1957. No Brasil, a regulamentação é dada por uma resolução do Conselho Nacional de Saúde de 1996. Eles são baseados em uma clara distinção entre o que é prática clínica e o que é pesquisa médica. A prática clínica tem o objetivo de diagnosticar, curar e trazer benefícios para o bem-estar e a saúde do paciente, utilizando princípios comprovados cientificamente. A experimentação médica tem o objetivo de inovar, ou seja, descobrir novos tratamentos que irão por sua vez servir de base para a prática clínica no futuro. Portanto, a pesquisa tem um efeito "amplificador" extremamente importante e necessário, uma vez que atinge, em prazos mais longos, um número incomparavelmente maior de pessoas. Imaginem só, por exemplo, quantos bilhões de pessoas foram beneficiadas pela descoberta da penicilina, ou que poderão ser beneficiadas pela descoberta de uma cura para a AIDS. Em outras palavras: a prática clínica não sobrevive nem evolui sem a pesquisa.

No entanto, muitas normas éticas vigentes são inadequadas ou de difícil interpretação ou aplicação. A distinção entre prática clínica e pesquisa médica muitas vezes é nebulosa, pois os pacientes utilizados em uma pesquisa também estão sendo tratados ou buscando tratamento; ou então, pacientes que estão sob cuidados clínicos são submetidos a práticas ainda não inteiramente comprovadas, ditas "experimentais". Um exemplo para entender melhor a distinção: durante muitos anos, as cirurgias de correção refrativa da córnea para miopia foram consideradas experimentais (e por causa disso não eram pagas por nenhum convênio médico). Isso não impediu que centenas de milhares de pacientes se submetessem a elas, mesmo em ausência de estudos sobre seus efeitos mais a longo prazo. Depois de muitas modificações e pesquisas bem sucedidas, finalmente esse tipo de cirurgia passou a ser comprovado como eficaz e livre de riscos importantes.

Não podemos perder de vista que a ética médica foi feita em grande parte para proteger os pacientes. O pai da Medicina, Hipócrates, foi o primeiro a formular o famoso princípio, "primum non nocere" (em primeiro lugar, não causar dano). A medicina moderna modificou esse sábio mandamento, estipulando que o tratamento deve "maximizar o benefício e minimizar o dano". Muitos ativistas radicais contra a experimentação humana acham que nenhum risco deve ser corrido, mesmo que um grande benefício possa ser obtido posteriormente para incontáveis outras pessoas. É um grande dilema, pois até mesmo evitar o dano exige que aprendamos o que é danoso, e para chegar até esse conhecimento pode ser necessário expor experimentalmente pacientes ao risco de dano! Não tem outro jeito. Se a pesquisa científica irá trazer enormes benefícios, mas somente dentro de dez anos, ela deve ser interrompida e repudiada por implicar em pequenos danos imediatos? Se o critério hipocrático está sendo respeitado, como parece ser o caso da Unicamp, quem está sendo prejudicado, então?

O princípio fundamental da pesquisa com seres humanos é o de participação apenas com consentimento bem informado e dado voluntariamente (nos EUA, o ex-astronauta e senador John Glenn propôs uma lei federal para a proteção de seres humanos usados em pesquisas médicas, a qual considera um crime severamente punível a realização de experimentos em que a participação é involuntária). Pressões inadequadas ou indução parcialmente involuntária podem ocorrer quando os participantes da pesquisa são vulneráveis à influências indevidas ou facilmente manipuláveis (prisioneiros, pessoas pobres ou muito doentes, minorias raciais, mentalmente incapacitados, subordinados hierárquicos, etc.), ou quando a situação cria ameaças pessoais (suspensão do direito ao tratamento, punições por não participação, etc.).

A recompensa financeira excessiva de voluntários é considerada como sendo uma forma de manipulação, mas essa é uma das áreas mais nebulosas e difíceis de interpretar da ética médica. E é também justamente aquela que a Unicamp vem sendo repetidamente acusada de violar: o pagamento de voluntários humanos para pesquisas farmacológicas (bioeqüivalência de medicamentos, ou estudos de dose/efeito). Todos os códigos de ética são unânimes em reconhecer como válida e justa uma recompensa financeira dos voluntários por sua participação, tanto em termos de transporte, tempo perdido, etc., como em tolerância ao desconforto e ao perigo. Entretanto, são extremamente vagos com relação ao que definem como uma "recompensa razoável", ou seja, que não seja tão pequena que desencoraje o recrutamento de voluntários, e nem tão grande que afete o seu julgamento; passando o pagamento a ser uma espécie de coerção sutil, que o induza a participar de uma forma que viole o postulado da voluntariedade. Pior ainda, deixa em aberto uma questão altamente subjetiva, que é a da compensação poder ser proporcional ao perigo, risco e desconforto a serem sofridos pelos pacientes. Ora, se eu tenho medo de injeção, posso achar que 500 reais por dia seria uma boa compensação para ter que passar por isso. Outra pessoa, que não ligue a mínima, poderia achar que 100 reais é perfeitamente razoável. Ou: se eu souber que vou ter uma probabilidade de 1 em 1000 de morrer por causa do experimento, posso querer 1 milhão de dólares para participar, pois não desejo correr esse risco. Mais ainda: o que é "justo e razoável" é enormemente variável de lugar para lugar, entre classes sociais e em diferentes contextos econômicos (uma pessoa que já tem bastante dinheiro pode concordar participar de graça ou querer ganhar muito, um biscateiro "duro" que precisa pegar seis ônibus e deixar de ganhar sua féria diária, pode achar boa qualquer quantia, ou também querer ganhar muito mais. Onde ficamos? Como calcular o valor "justo e razoável" que o código exige? Como punir uma instituição ou um pesquisador com base em critérios tão subjetivos?

Na verdade, o quanto um pesquisador estipula pagar para um voluntário é uma decisão baseada mais no "mercado" (o quanto outros pesquisadores estão pagando, mais ou menos como fazemos com nossas empregadas domésticas…), na "política" (o quanto ele precisa pagar para obter as boas graças dos colaboradores) e nas finanças (quanto dinheiro ele tem no total, e quantos voluntários serão necessários estatisticamente). Estudos bem pagos, geralmente por multinacionais, remuneram melhor os voluntários. E assim por diante.

Algo me diz que todo esse quiproquó que está havendo é baseado mais em ciumeiras, politicagens e posicionamentos ideológicos do que em critérios racionais e éticos. O que é uma pena para a pesquisa nacional.
 

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Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 2/7/99.

Autor: Email: renato@sabbatini.com

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