Indice de Artigos

 

In anima nobile

Renato M.E. Sabbatini


Você seria voluntário para um estudo científico em que uma seringa cheia de vírus da AIDS seria injetada em seu corpo ?

Pode parecer incrível, mas existem muitos voluntários para esse tipo de experimento, que é fundamental para verificar se novas vacinas funcionam para deter a infecção de AIDS. Vacinar pessoas que fazem parte de grupos de alto risco para AIDS não é suficiente, pois o grau de infecção não é controlado. Desde que as primeiras vacinas passaram a ser científicamente desenvolvidas, é necessário esse tipo de estudo em voluntários. No caso da AIDS, esse problema é agravado pelo fato de que não existem os chamados "modelos animais", ou seja, infecções causadas em animais que sejam tenham características idênticas às encontradas nos seres humanos. Aliás, mesmo quando eles existem, os testes humanos ainda são necessários, pois não se tem certeza de antemão se o que funcionou com um animal de laboratório vá funcionar numa campanha de vacinação em condições reais.

Os médicos chamam a esse experimento de "in anima nobile", ou seja, no "animal nobre" (supostamente nós, a espécie humana), enquanto que os experimentos em animais não-humanos são chamados de "in anima vile" (nos animais vís). Existem, é claro, leis muito estritas em todos os paises, que regulam esse processo (atualmente, por exemplo, proibe-se que condenados à prisão obtenham uma comutação da pena em troca de participarem como voluntários em testes de vacina. No passado eles já foram as principais cobaias "in anima nobile", mas a Suprema Corte argumentou que é uma troca muito desigual, que se aproxima da comercialização não monetária).

Com isso, é muito difícil fazer experimentos desse tipo. Alguns pesquisadores, médicos e técnicos de laboratório chegam a se apresentar como voluntários, tamanha a fé que têm nos métodos desenvolvidos. É o caso do grupo de teste de uma nova vacina desenvolvida a partir do vírus HIV vivo, pelo Dr. Ronald Desrosiers, um pesquisador da Universidade de Harvard, dos EUA. O vírus vivo é atenuado através de manipulações bioquímicas e físicas, e é injetado no organismo para provocar a resistência imunológica. Experimentos com vírus vivos são particularmente perigosos para a cobaia, especialmente as que usam vírus altamente mutantes como o HIV. Eles podem causar a doença que se estava tentando evitar. Isso aconteceu com uma das primeiras vacinas contra a poliomielite, desenvolvida pelo Dr. Jonas Salk na década dos 50s. Milhares de crianças caíram doentes com pólio, depois que uma batelada da vacina apresentou atenuação insuficiente, e algumas centenas morreram. O Dr. Salk ficou arrasado com isso, mas uma nova vacina foi logo desenvolvida a partir de pedaços de virus, pelo Dr. Albert Sabin, e revelou-se ser mais segura. Ela é usada até hoje.

A história da Medicina é repleta de heróis anônimos e não tão anônimos que realizam atos de bravura para testar novas vacinas e soros. No Brasil, o Dr. Vital Brasil, inventor dos soros antiofídicos, de fama mundial, deixou-se morder por cobras venenosas para poder testar a eficácia dos soros (e eles funcionaram). Na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, onde estudei, um pesquisador do Departamento de Patologia, e um de seus assistentes técnicos, se infectaram de propósito com o protozoário da doença de Chagas, para testarem uma vacina que eles haviam desenvolvido (também funcionou).

No entanto, muitos experimentos falharam e existem histórias de pesquisadores que, auto-infectados, acabaram morrendo. E não adianta fazer seguro de vida, como muitas indústrias farmacêuticas exigem no caso de experimentos onde a mortalidade é reconhecidamente baixa. Nenhuma seguradora honraria uma apólice em que a pessoa se infectou de AIDS por vontade própria, mesmo que a vacina tenha se comprovado eficaz em estudos "in anima vile" !


 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 09/10/97.

Autor: Email: renato@sabbatini.com
WWW: http://renato.sabbatini.com Jornal: http://www.cpopular.com.br


Copyright © 1997 Correio Popular, Campinas, Brazil