CIÊNCIA E TECNOLOGIA 12/07/2002 
Paleontologia

Quebra-cabeça
Escavação descobre na África o mais
antigo fóssil da linhagem humana

Natália Azevedo

O enigma da evolução
Confira o mapa

  Cortesia Internet Stock Review/Reuters
  Primos: apesar das diferenças físicas, o chimpanzé tem 98,2% dos genes idênticos ao mais fenomenal dos seres humanos
  Dan Chung/Reuters

Antiga colônia francesa, o Chade é um dos países africanos mais pobres e castigados pela Aids. Localizado na região central do continente, o clima é tropical ao sul, onde está a maior parte da população, e desértico ao norte, onde sopram ventos fortes que tornam a região hostil para se viver. Foi num ponto a nordeste do deserto de Djourab, sob tempestades de areia e escavando num sólo árduo, que o persistente e obcecado paleontólogo francês Michel Brunet e uma equipe de 40 pesquisadores franceses, chadeanos e americanos fizeram a descoberta que colocou o país no centro dos holofotes da comunidade científica mundial. Um crânio quase completo, dentes e fragmentos de uma mandíbula pertencem de fato a um hominídeo que viveu na região há sete milhões de anos. O crânio foi encontrado há um ano por um estudante que integra a equipe de escavações. A descoberta, considerada a mais importante desde que o primeiro homem-macaco foi encontrado há 77 anos, faz recuar em pelo menos um milhão de anos o cronômetro da linha evolutiva da espécie humana. “Este é o ponto de partida para uma nova compreensão de nossa linhagem. Procuro por isso há 25 anos. Essa é a minha história, a de todo o mundo. É a história da humanidade”, disse Brunet à revista Nature, na qual o tratado científico foi esmiuçado.

Diante disso, nosso primo mais antigo não é mais a ossada batizada de Lucy, encontrada em 1925 no Sul da África, nem o Homem do Milênio, descoberto há dois anos no Quênia, e tudo indica que a história da origem do ser humano não será completamente explicada com o novato Toumaï, como o conjunto de ossos foi apelidado. No Chade, o nome Toumaï é dado às crianças que nascem antes da estação seca, em goran, idioma falado na região, e significa esperança de vida. O achado indica que a diversidade de criaturas pré-humanas pode ter sido bem maior e pode ter vivido há muito mais tempo do que se imaginava, pondo em xeque a teoria do elo perdido, segundo a qual um antepassado único teria dado partida na separação entre a linhagem dos chimpanzés e a dos humanos, milhares de anos atrás. E reforça a tese de que a África é o berço da humanidade.

M.P.F.T  
Obsessão: Brunet passou 25 anos buscando origens da evolução humana  

Metade chimpanzé, metade pré-humano, Toumaï viveu numa época em que o
deserto do Chade era coberto por savanas onde viviam mamíferos, peixes e répteis que se alimentavam num lago de 400 mil quilômetros quadrados. Hoje, o mesmo lago está reduzido a apenas cinco mil quilômetros quadrados. Uma hipótese para o desaparecimento dessa espécie se apóia na tese de que um forte impacto ambiental, como um maremoto ou cataclismo, transformou a região num lugar inóspito.

Ponta do iceberg – Toumaï ganhou o nome científico Sahelanthropus tchadensis. De costas, parece um chimpanzé e, de frente, pode passar por um australopiteco de 1,7 milhão de anos. O formato do crânio é semelhante ao dos chimpanzés mais evoluídos, os dentes caninos são pequenos e a forma como a medula espinhal penetra a base do crânio sugere que a espécie pode ter sido bípede, embora isso ainda não esteja comprovado. Na realidade, o crânio e os pedaços da mandíbula encontrados no Chade trouxeram mais dúvidas do que garantias na tumultuada história da origem do ser humano. “Esse fóssil é como um mosaico. Mostra que nossa evolução não foi linear. É a ponta do iceberg de uma nova classificação científica das diferenças evolutivas entre os hominídeos”, diz o antropólogo Bernard Wood, da Universidade George Washington, nos EUA, à Nature.

A investigação dos primatas na incansável busca pela origem de nossa própria espécie nos trouxe há dois anos a revelação de que geneticamente somos 98,2% idênticos aos chimpanzés. Os milhares de genes que compõem a diferença de 1,8% são responsáveis pelo controle do sistema nervoso, segundo o neurocientista da Unicamp Renato Sabbatini. Os outros milhões de genes que atestam as semelhanças entre seres humanos e macacos coordenam os sistemas orgânicos como o intestino, o coração e os sistemas cardiovasculares. Qualquer que seja a trajetória humana, Toumaï não é só mais um aglomerado de ossos que entra para a galeria de primos distantes. Se a evolução é mesmo um grande mosaico de adaptações das espécies às circunstâncias e ao ambiente, como afirma o antropólogo Wood, quanto mais fósseis forem encontrados, maiores serão as chances de se juntarem as peças desse complicado quebra-cabeça da vida.