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A Laranja Mecânica

Renato Sabbatini

Em um livro que acabou se tornando profético, o autor inglês Anthony Burgess antecipou um futuro aterrador. Bandos de jovens ultraviolentos, intoxicados por drogas ultramodernas, embalados por músicas ultrajantes, cometem atentados bárbaros e sem sentido contra famílias de classe média. Invadem, mutilam, estupram, matam. Se divertem, acham engraçado, são sociopatas artificialmente induzidos, não dão a mínima para a vida e a dignidade alheias.

Na época, todo mundo achou uma distopia improvável (uma utopia ao contrário). Nem mesmo a brilhante transcrição do livro feita por Stanley Kubric para o cinema, com o inquietante ator Malcolm McDowell no papel principal, convenceu a sociedade que tempos como aqueles chegariam a acontecer um dia.

Campinas, 1997. Qual é a diferença com o cenário desenhado por Burgess ? Jovens vândalos ultradestrutivos, com os cérebros lesados pelo "crack", alimentados pela impunidade e pela frustração dos despossuídos, em uma sociedade que não lhes dá nenhuma esperança de emprego ou dignidade, mas que os impulsiona cegamente para um consumismo frenético; invadem, mutilam, estupram, queimam e matam. O "crack" os torna sociopatas artificiais, não tem mais nenhum sentimento por nada, a vida deles e dos outros vale menos que um tostão furado, como se dizia antigamente. Como diz um primo meu, que é advogado, se você quiser ver o futuro de nossa sociedade, visite a carceragem de um de nossos distritos policiais, e verá a ferocidade das bestas-fera, em toda a sua crueza. E que serão soltos um dia não muito distante, com toda a certeza…

Pois eu respondo qual é a diferença. Em "Laranja Mecânica", a sociedade se defende de modo igualmente bárbaro. Agarram McDowell, e o submetem a uma terrificante lavagem cerebral, com o auxílio da tecnologia. Com a cabeça coroada de eletrodos, os olhos abertos à força com pinças metálicas, uma tempestade hedionda de dor e de sofrimento acomete o seu cérebro cada vez que pensa ou visualiza alguma cena de violência. Sai do hospital-presídio com a psique completamente mutilada, mas já totalmente inofensivo para a sociedade.

Na sociedade campineira de 1997, não fazemos nada. Lotamos as cadeias com esses jovens, quando conseguimos apanhá-los, tentamos escondê-los de nosso consciente coletivo. Se fossem animais, a Sociedade Protetora dos Animais protestaria violentamente contra as condições em que os empilhamos em jaulas imundas e superlotadas, … Ali, eles aprendem muito, se intoxicam mais. E saem logo, cheios de vingança contra os que lhes deram uma terapia ao contrário.

A ciência pode nos ajudar a lutar contra a criminalidade ? Pode. Mas nós não a utilizamos. É insensato demais. Não estamos sabendo nos defender. Os excessos do passado nos inibem, talvez.

Em 1970, mais ou menos na época em que "Laranja Mecânica" foi publicado, dois jovens doutores da Universidade de Harvard, Vernon Mark e Frank Ervin, escreveram um livro impressionante, "Violência e o Cérebro". Nele, anunciavam que tinham conseguido completo sucesso no tratamento de personalidades ultraviolentas, em que esse comportamento era causado por doenças cerebrais. Argumentavam que uma parte considerável dos criminosos violentos estudados em prisões dos EUA e Inglaterra (cerca de 65 %) apresentavam patologias cerebrais, tais como epilepsia condutopática (convulsões de uma parte do sistema nervoso que levam a episódios de descontrole da conduta), lesões provocadas por drogas, etc. Na época, o crack, o LSD, a "speed", a "ecstasy" eram desconhecidas ou pouco usadas, mas os que estudam os viciados dessas drogas, hoje, sabem que elas destróem o cérebro de uma maneira impressionante, em pouco tempo.

Um neurocirurgião japonês chamado Narabayashi tinha utilizado pela primeira vez na década dos 60s uma técnica de cirurgia cerebral, chamada neurocirurgia estereotáxica funcional, para lesar pequenas áreas, chamadas de corpos amigdalóides, menores que uma moedinha de dez centavos, na parte do cérebro que controla o comportamento agressivo,. Fez essas operações em 98 pacientes com agressividade que não podia ser controlada por nenhum outro meio, entre as quais 27 crianças. Obteve sucesso fenomenal: mais de 70 % dos pacientes perderam a agressividade de forma irreversível, e sem os efeitos provocados pela lobotomia prefrontal, uma operação que a psiquiatria utilizou extensamente entre 1937 e 1950 em todo o mundo, para controlar o comportamento de psicopatas (mais de 50 mil pessoas foram operadas em todo o mundo).

Mark e Ervin melhoraram a técnica cirúrgica e fizeram um estudo mais sistemático e bem-feito, e a anunciaram como uma solução mais humana e científica para o problema da violência neuropática. Não a apregoaram como uma solução universal, mas como algo que podia ser efetivamente feito. Foram crucificados pela mídia e pelos defensores dos direitos humanos dos presidiários. A operação caiu em desgraça. Ainda é feita para casos extremos nos EUA (agora chama-se cingulectomia estereotáxica), mas menos de 100 casos foram operados no ano passado, e nenhum deles era um criminoso institucionalizado. Não defendo a volta da lobotomia e nem de um cenário como o do presídio de "Laranja Mecânica". Mas está na hora de fazermos alguma coisa realmente efetiva contra o problema da violência.


 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 08/06/1997.

Autor: Email: renato@sabbatini.com
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