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E clonar bicho, pode?

Renato Sabbatini


Meu artigo, na sexta-feira passada ("Clonar gente, pode ?"), provocou bastante polêmica, como eu esperava. Pois eu acredito que, em algumas circunstâncias estritamente controladas pela ética médica, a clonagem humana poderia ser benéfica. Os riscos de mal-uso são muito pequenos (esse mesmo argumento foi usado à exaustão quando surgiu o primeiro "bebê de proveta", na Inglaterra, em 1972, e nenhum abuso foi detectado, evidentemente). Talvez, a culpa por esses exageros publicados na imprensa nos últimos dias tenha sido provocado por filminhos improváveis, como "Meninos do Brasil" (no filme, Adolf Hitler é clonado 54 vezes por ex-nazistas interessados em ter um novo ditador. Como eles sabiam que o ambiente e a educação modificam consideravelmente a expressão dos genes de uma pessoa, as crianças foram criadas com os mesmos traumas e ambiente familiar do que Hitler, o que é absurdo e praticamente impossível de reproduzir).

No entanto, a polêmica pode se extinguir sozinha, pois, ao que parece, as células humanas adultas poderiam ser inclonáveis. Diferentemente das células das ovelhas, que se diferenciam depois de quatro ciclos de reprodução do óvulo, as células humanas já se diferenciam no segundo ciclo, o que torna muito mais difícil realizar o procedimento desenvolvido pelos cientistas do Instituto Roslin para a ovelha Dolly. Outro impedimento é a taxa extremamente baixa de sucesso obtida com os experimentos com as ovelhas. Apenas 1 entre 300 óvulos deu certo. Essa taxa torna inviável a clonagem de um ser humano, pois na prática seria muito difícil obter óvulos femininos doados (ou mais provavelmente, vendidos) nessa quantidade. Finalmente, o uso de células adultas não seria recomendado, pois, por azar, o médico poderia pegar uma célula já portadora de mutações danosas em seu material genético e produzir uma criança com defeitos congênitos horríveis.

Mas, se 80 % da população está contra a clonagem humana, a opinião pública se inverte quando se trata da clonagem de animais para fins benéficos para a humanidade. E aqui acho que cabe uma explicação mais detalhada sobre como isso pode acontecer. Basta entender o objetivo original dos pesquisadores escoceses: eles queriam apenas desenvolver uma técnica reprodutiva mais eficiente para os chamados animais transgênicos. Explico: a empresa de biotecnologia que financiou sua pesquisa, a PPT, já tinha produzido uma vaca capaz de produzir em seu leite uma proteína humana que contém em sua composição todos os aminoácidos essenciais que um bebê necessita (como o leite humano). Rosie, como foi b indústria de alimentos e a indústria farmacêutica. Centenas de plantas e animais transgênicos já foram produzidos dessa forma, e patenteados, mas até agora poucos foram utilizados para produção em escala industrial de algum novo medicamento ou alimento geneticamente alterado. A técnica de clonagem de embriões ou de adultos resolve brilhantemente esse problema. As possibilidades são infinitas, e a biotecnologia poderá se transformar em uma indústria bilionária em pouco tempo. Em um dos exemplos que lemos recentemente, está uma cabra que produz leite contendo uma proteína anticoagulante humana, que poderá ser tomado por todas as pessoas que fizeram uma cirurgia cardíaca ou que tiveram um infarto do miocárdio, ou que tem tendência a derrames cerebrais ou outros tipos de distúrbios de coagulação intravascular. Indubitavelmente, essa é uma aplicação com enorme potencial de benefício para a medicina.

No entanto, é necessário ter muita cautela. O fenômeno da vida é imprevisível em muitos aspectos, e o homem não tem conhecimento e muito menos controle sobre todos eles. Os efeitos de longo prazo de se destruir totalmente a estratégia adaptativa da natureza (através da seleção natural), que sempre consegue um equilíbrio entre as formas de vida e o ambiente onde elas vivem, pode ser muito perigoso. As pressões econômicas ficarão cada vez mais fortes. A responsabilidade moral dos cientistas é cada vez mais importante.
 


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 14/3/97.
Autor: Email: renato@sabbatini.com

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