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Mutatis mutandi

Renato M.E. Sabbatini

Meu artigo sobre embriões congelados levou a uma benéfica polêmica, tendo vários leitores escrito para dar a sua opinião. Um dos meus leitores, que também é professor universitário e divulgador científico, centrou suas críticas na probabilidade de que os embriões sofram mutações enquanto estão armazenados. Seu argumento principal é que o caso não é técnico e sim moral (com o que concordo), e que a eventualidade de mutações induzidas por radiação é rara demais para ser levada em conta, bastando proteger devidamente os embriões (do que discordo, pois a estimativa de que 5 % dos embriões se perdem, em média, por ação da radiação de fundo, não é minha, e sim de uma das maiores autoridades americanas em fertilização in vitro, o Dr. Mark Perloe, de Atlanta, que me afirmou isso em correspondência pessoal).

Segundo o Dr. Walter Pinto Jr., respeitadíssimo geneticista da UNICAMP, e grande autoridade nessa área, ao contrário do que afirma o Prof. Baranauskas, a ocorrência de mutações é muito mais alta do que se imagina. Cerca de uma em cada 200 crianças nasce com algum tipo de defeito genético ou de desenvolvimento. Destas, cerca de 10 % são devidas à mutações ! A diferença em um único aminoacido na proteína sintetizada pelo gene mutado já pode levar à doença: a anemia falciforme, por exemplo, é causada por uma diferença mínima deste tipo na síntese da hemoglobina. Para que se observe essa freqüência assustadora, a incidência de mutações no processo de reprodução e desenvolvimento deve ser muito alta.

Existem dois tipos de mutações em genes: as espontâneas e as induzidas. As primeiras, bastante raras (ocorre uma em cada um bilhão de bases de DNA, por ano), são devidas a erros no processo de replicação do DNA. Já as mutações induzidas são muitas vezes mais freqüentes, pois dependendo do caso, podem chegar a uma probabilidade de uma em um milhão, por gene, por ano. Pode parecer muito baixa, mas isso deve ser ainda multiplicado pelo dobro do número de indivíduos na população exposta. Estima-se que, em média, dois genes completos mutam por ano, por geração. Existem vários agentes externos que comprovadamente podem causar mutações: radiação eletromagnética de vários tipos (ultravioleta, raios X), radioatividade, temperatura alta, agentes químicos de vários tipos, vírus, etc. Estes agentes também podem aumentar os danos causados em cromossomos inteiros, o que leva a sérias conseqüências para o feto, geralmente letais. Certas doenças aumentam muito a incidência desses defeitos, quando ocorrem na gravidez: é o caso da AIDS, rubéola, toxoplasmose, citomegalovírus, diabetes e fenilcetonúria, etc.

A grande maioria das mutações gênicas é danosa para a célula que o apresenta, pois é m benéfico das mutações. Sem elas, não haveria a evolução dos organismos vivos. Ela ocorre através de uma combinação totalmente aleatória (e rara): a ocorrência de uma determinada mutação e de uma determinada modificação no ambiente que, juntas, levam a um maior sucesso reprodutivo do indivíduo, aumentando a freqüência do seu gene na população daquela espécie. Esse é o mecanismo de adaptação das espécies, e pode ocorrer em poucas gerações, quando a mudança é grande. Diversos estudos mostram que a variação genética provocada por mutações é muito mais alta do que se imagina: em média, cerca de 30 % dos genes. Assim, quanto mais alta a taxa de mutação, maior a variabilidade genética e as diferenças entre as espécies.

A medicina progrediu muitissimo no conhecimento dos mecanismos moleculares das doenças de fundo genético. Já temos elementos suficientes para poder realizar ações preventivas eficientes (algumas delas existem há décadas, como usar um avental de chumbo para proteger o ventre durante radiografias), e não há porque aumentar o risco desnecessariamente, como no caso dos embriões congelados, tristemente armazenados durante anos e anos no fundo escuro de um congelador. Comparar a sua eliminação ao Holocausto, ou ao massacre de Herodes, como fizeram dois leitores, é um exagero absurdo e altamente injusto, e que não contribui nem um pouco para a racionalidade do debate.


Publicado em: Jornal Correio Popular,  Campinas, 29/8/96,
Autor: Email: renato@sabbatini.com

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