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Milagres acontecem ?

Renato M.E. Sabbatini

A ciência realiza milagres ?

Esta é uma pergunta que devemos nos fazer, quando vemos as impressionantes transformações causadas pelo progresso científico e tecnológico deste século. Aos médicos de 50 anos atrás, por exemplo, deve ter parecido um autêntico milagre a ação fulminante da penicilina contra os micróbios. Isso é difícil de se imaginar hoje, devido à banalidade das armas usadas pela medicina para combater as doenças infecciosas. No entanto, não faz tanto tempo assim, uma pneumonia ou uma difteria eram doenças com altíssima mortalidade. Uma pneumonia dupla, então, era verdadeiro atestado de morte. Poucos escapavam. Um conhecido meu, que foi médico no Hospital de Pneumologia e Tisiologia do Rio de Janeiro (atualmente Grafré-Guinle) contou-me o enorme impacto psicológico, de quase irrealidade, que sentiu a primeira vez que salvou da morte certa, em menos de 12 horas, um paciente com pneumonia bilobar, que recebeu uma das primeiras ampolas de penicilina que chegaram ao Brasil no pós-guerra (o antibiótico já era conhecido desde antes da II Guerra Mundial, mas era caríssimo, e reservado praticamente apenas para os hospitais militares). Deve ter sido uma experiência fantástica.

Infelizmente, milagres como esse são muito raros de acontecer, apesar de todo o vertiginoso progresso da ciência médica em nosso século. Eles ocorrem toda vez em que a ciência consegue o que em inglês se chama de breakthrough, ou seja, um rompimento, uma penetração súbita e inesperada em uma área nunca antes conseguida. Os cientistas e os editores das melhores revistas onde os resultados de pesquisa básica e clínica são publicados, são extremamente cautelosos e conservadores em usar essa palavra. Breakthroughs reais só são anunciados (e alardeados), quando se têm absoluta certeza que eles realmente revolucionarão algum campo do diagnóstico e tratamento. Rompimentos dignos desse nome foram, por exemplo, a vacina, a anestesia, o eletrocardiograma, a penicilina, a pílula anticoncepcional, o primeiro transplante de órgãos, o tomógrafo, a primeira terapia gênica. Cada um desses avanços técnicos da Medicina teve o potencial de afetar enormemente o delicado equilíbrio entre a vida e a morte, a saúde e a doença, em milhões e milhões de pessoas.

Essa mesma cautela, infelizmente, não é seguida pelos meios de comunicação de massa. Na ânsia do sensacionalismo e do furo, jornalistas e editores mal-informados anunciam quase que diariamente milagres médicos, como se fossem uma realidade disponível já na semana seguinte. Acredito que fazem isso, não por má-fé, mas por simples desconhecimento da dinâmica das descobertas médicas, e das complexas vias e mecanismos necessários para transformar uma simples curiosidade de em um produto concreto, capaz de alcançar centenas de milhões de pessoas em um prazo o mais curto possível. Entre a descoberta e a comercialização, podem decorrer anos, e serem gastos muitos milhões de dólares. Exemplo: atualmente, o desenvolvimento, teste, a ainda injustificada) de que um tratamento definitivo para a calvície já seria imediatamente possível. Nada tão longe da verdade. Ainda se passarão muitos anos, até que essa descoberta se confirme, ou não, em seres humanos (ela foi feita em camundongos), leve a um produto vendável, seja extensamente testado quanto à sua eficácia e segurança, e seja comercializado. Pode ser, mesmo (e isso acontece numa enorme porcentagem dos “milagres” anunciados pela imprensa leiga) que a descoberta nunca leve a nada, por diversos fatores, que vão de uma prosaica falta de capital, até a ocorrência de reações colaterais ou riscos eticamente ou medicamente inaceitáveis.

Portanto, caro leitor, confie, desconfiando, de bombásticas notícias anunciando novos milagres médicos. É grande a probabilidade de que eles não o sejam, pelo menos não imediatamente...


Publicado em: Jornal Correio Popular, 4/4/96, Campinas,

Autor: Email: renato@sabbatini.com
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