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Tecnologia médica e dignidade

Renato M.E. Sabbatini

Uma Unidade de Terapia Intensiva moderna é um lugar impressionante. Pacientes em estado crítico, que não estariam vivos se não estivessem ali, são cercados de complexos equipamentos eletrônicos. Fios e tubos em profusão entram e saem de vários orifícios, cavidades e pontos na pele do paciente. Bombas de injeção automática de medicamentos, respiradores eletromecânicos, controles de temperatura, marcapassos cardíacos, trabalham continuamente, envolvendo o doente em um ruído contínuo, em uma dança de traços verdes em telas de monitores, em bipes sonoros sincronizados com a batida do coração, em sussurros e batidas que ecoam de forma sintética os ritmos da vida. Luzes fluorescentes fortes brilham o tempo todo, o ar é refrigerado. O doente, quando está consciente, se sente constantemente vigiado, violado em sua intimidade fisiológica e anatômica. Está nu e desprotegido, inerme, controlado por aparelhos, Não é mais um ser humano autônomo, as máquinas fazem parte dele, sem elas ele não seria capaz de viver.

Para muitos doentes, a UTI é o passaporte para a vida. Pessoas politraumatizadas, que sofreram cirurgias graves, ou que tiveram um infarto cardíaco são salvas durante o período de atenção intensiva. Esse, aliás, é um conceito relativamente novo em Medicina, tendo passado pelo seu maior período de desenvolvimento durante a Guerra do Vietnã. A idéia era colocar o paciente com alto risco de morrer em um ambiente onde suas funções vitais fossem continuamente monitoradas, e onde a intervenção salvadora em crises pudesse ser feita rapidamente, de forma concentrada e intensa, em um único lugar. O progresso da medicina intensiva dependeu de diversas invenções recentes da tecnologia biomédica, da eletrônica, da informática e da farmacologia.

Os problemas éticos começaram a surgir, entretanto, com os pacientes que não têm chance de se recuperar facilmente, e ficam muito tempo na UTI, com suas funções vitais mantidas artificialmente. Eles não tinham sido previstos dentro da filosofia da UTI, que é a de cuidar muito intensamente, por pouco tempo. Para esses pacientes, capturados e presos na emaranhada teia de contradições e dilemas da tecnologia e da ética, a dignidade da vida se escoa aos poucos. Os custos explodem (uma estadia em uma UTI particular pode custar até 3 mil reais por dia !), e não se expressam em cura ou alta. A morte, inevitável em praticamente 100 % dos casos, é apenas retardada, a um custo altíssimo, financeiro, moral, psicológico e médico, para todos os envolvidos.

Os médicos sabem de tudo isso. Um procedimento estatístico de avaliação desenvolvido na década dos 70, denominado APACHE, consegue prever com mais de 80 % de certeza se o paciente internado em estado crítico vai morrer ou não, independentemente do que se faça com ele na UTI. Ele é baseado na correlação entre diversas variáveis clínicas (se o paciente está em coma ou não, como está a oxigenação de s eutanásia passiva), ordens médicas de não tentar ressuscitar em caso de parada cardíaca ou respiratória, e a suspensão de medicamentos. De acordo com nossa arcaica legislação, isso equivale a ser “acessório de homicídio”, um crime. Por isso, pouquissimos médicos querem assumir voluntariamente essa decisão, mesmo em face de pacientes dispostos a acabar com seu próprio sofrimento, ou parentes desesperados com situações sem volta.

Os pacientes terminais têm o direito de morrerem em paz e com dignidade ? Quem toma essa decisão ? Esses são dilemas criados, paradoxalmente, pelos avanços da tecnologia médica, que não foram acompanhados por mudanças na ética.


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 10.10.96

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