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Big Brother aos pouquinhos

Renato Sabbatini

Big Brother, o ditador invisível onipresente no futuro distópico relatado por George Orwell no famoso livro "1984", pode estar se realizando quinze anos mais tarde do que o previsto pelo autor. Pelo menos no que diz respeito à tecnologia de informação necessária para implementá-lo.

Um bom exemplo é o imaginativo comercial de TV que a IBM, que almeja se tornar líder no fornecimento de soluções de negócios eletrônicos (e-business), está veiculando nos EUA. O vídeo mostra um sujeito de aspecto suspeito andando por um supermercado, pegando várias mercadorias das prateleiras e enfiando-as debaixo do casaco. De longe, ele é seguido e detectado por várias câmaras de segurança. No final, o sujeito encaminha-se direto para a saída, e um guarda vai atrás dele. Com bons modos, diz apenas que ele se esqueceu de pegar o recibo.

O comercial mostra uma série de tecnologias que já podem ser utilizadas, mesmo que a pessoa não queira. Cada mercadoria tem um identificador radiomagnético, que comunica a sua presença, código, preço, etc., ao passar por um arco detetor situado na saída do supermercado. O cliente também carrega em seu corpo um cartão de débito inteligente ("smart card") que é capaz de comunicar ao sistema a identidade do seu portador, usando o mesmo sistema. Tudo o que o sistema de automação do supermercado precisa fazer é lançar as compras no cartão, e emitir o recibo, sem necessidade de uma pessoa na caixa.

O comercial tem muitas implicações, sendo que a IBM não deve ter-se dado conta de uma delas, que é o terrorismo da situação; ou seja, as pessoas não passarão mais a ter livre-arbítrio. Para o supermercado e para os bancos, será ótimo, para a polícia, muito mais, pois os furtos ficarão praticamente zero. O comercial me deixou ao mesmo tempo fascinado e atemorizado com as possibilidades, pois a tecnologia dos cartões "wireless" passará por uma enorme expansão nos próximos anos, podem escrever. Quando os terminais receptores estiverem ligados na Internet, então, estará completo o circuito necessário para implementar o Big Brother. Querem ver?

Vamos agora imaginar uma outra situação. A maioria das rodovias nos EUA e Europa já está implementando o pedágio eletrônico usando smartcards radiomagnéticos ou etiquetas externas coladas no veículo, que podem ser lidos por um raios laser quando ele passar por um portão detetor, no pedágio. A pessoa nem precisa parar: automaticamente, a quantia referente ao pedágio é deduzida do total armazenado no cartão ou de uma conta on-line aberta pela pessoa. Caso haja a ligação desse registro, ou transação, com outras bases de dados (o que é facílimo fazer), o posto de pedágio poderá ser usado para controlar e registrar as idas e vindas das pessoas, e até provocar a prisão de um indivíduo que está sendo procurado pela polícia, ou tem multas de trânsito demais. Indo um pouquinho mais além, arcos detetores desse tipo, instalados de forma inconspícua em vários pontos da cidade, poderá monitorar continuamente onde está o carro de uma pessoa, ou ela própria, se ela for obrigada a usar continuamente um smartcard de identificação. Os futurologistas pessimistas imaginam que, no futuro, pelo bem comum do controle do crime, as pessoas serão implantadas ao nascer com um "chip" radiomagnético de identificação única, tornando impossível escapar dessa monitoração, a qual se tornará cada vez mais presente. Ela poderá ser muito útil e benéfica (como localizar vítimas de seqüestros, por exemplo), ou ser usada para realizar certos tipos de controles e de estatísticas que ferem o nosso direito à privacidade.

As possibilidades abertas pelo altíssimo grau de miniaturização desses "chips" são infinitas. Nos EUA, já existe a categoria do "prisioneiro doméstico". Ele recebe uma pulseira que fica permanentemente presa ao seu corpo, e que contém um emissor de rádio. Ao se afastar mais do que alguns metros do local onde está "preso", um alarme é acionado, e a polícia recebe uma notificação. Caso ele viole mais do que duas vezes essa restrição, ele perde o direito da prisão-albergue e vai para uma prisão comum. Usando um microfone embutido no "chip" e uma memória de alta capacidade, seria possível também gravar tudo o que essa pessoa fala e enviar automaticamente pela Internet os registros diários de sua voz. Basta alguma autoridade judicial dar permissão para isso. Programas automáticos de reconhecimento de voz fariam a transcrição da fala, e outros softwares baseados em inteligência artificial procurariam por frases "suspeitas", tornando possível, assim, a monitoração simultânea de milhares de pessoas. Aliás, uma das justificativas para usar tecnologia de reconhecimento de voz será a de coibir fraudes no uso dos cartões sem fio, que poderá ser um enorme problema no futuro, justamente pela sua facilidade em ser usado sem controle visual.

Todas essas tecnologias já existem e provaram a sua eficiência. É uma questão de tempo (e de economia de escala), apenas, para que elas sejam implementadas. Algumas sociedades bem organizadas, como a alemã, têm reagido e conseguido bloquear efetivamente o uso de tecnologias deste tipo, por motivos óbvios (imaginem se Hitler, ou Sadam Hussein, dispusessem das mesmas…). Suspeito que, aqui no Brasil, a resistência civil será bem menor.
 

Para Saber Mais



Renato M.E. Sabbatini é professor e diretor do Núcleo de Informática Biomédica da Universidade Estadual de Campinas, colunista de ciência do Correio Popular, e colunista de informática do Caderno Cosmo. Email: sabbatin@nib.unicamp.br

Veja também: Índice de todos os artigos anteriores de Informática do Dr. Sabbatini no Correio Popular.



Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 31/12/99.
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