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O grande código

Renato Sabbatini


Em uma era fascinada pelos computadores e dominada pela tecnologia, a religião também se sofistica cada vez mais. De "púlpitos eletrônicos" na Internet, onde os pastores podem arrebanhar mais almas, com eficiência cada vez maior e braços cada vez mais longos, até o uso de computadores na análise de textos religiosos e na organização do dízimo, a informática chegou para ficar.

Um estranho livro, publicado recentemente, parece levar um pouco longe demais essa nova fé dos religiosos, a da tecnologia. Intitulado "The Bible Code" (O Código da Bíblia), ele faz uma proposta ousada: a de que o uso de computadores poderosos para analizar de várias maneiras o texto da Bíblia permite decifrar um código oculto, que contém muitas revelações e previsões para o futuro. Por exemplo, seu autor, Michael Drosnin, alega que conseguiu extrair dessa forma uma mensagem prevendo o assassinato do primeiro ministro Ytzakh Rabin (um ano antes disso acontecer), a Guerra do Golfo a a vitória eleitoral de Bill Clinton (!), entre outras predições de catástrofes e fins de mundo que estariam vindo por aí. Segundo Drosnin, esse seria o "livro secreto" da Bíblia, prometido em Daniel e Revelação.

A técnica computacional usada por Drosnin se chama ELS (que em inglês significa Equidistant-Letter Sequence, ou Seqüência de Letras Equidistantes). Consiste simplesmente em pegar as letras de um texto separadas entre si por um número fixo de letras intermediárias, e ver se aparece alguma coisa que faça sentido. Dá para fazer isso manualmente, mas um computador facilita bastante a tarefa, e permite variar rapidamente o número de letras de separação. Um matemático israelense, Eliyahu Rips, aplicou pela primeira vez essa técnica à Biblia, e declarou ter descoberto o nome de vários rabinos que só iriam nascer muitos séculos depois da criação do texto bíblico. Na interpretação do autor Drosnin, apareceu a frase "Os assassinos irão assassinar", seguida mais adiante de "Yitzhak Rabi". A probabilidade de que isso aconteça por acaso é abismalmente pequena (o artigo saiu numa seriíssima revista de pesqusas em estatistica), da ordem de 100 em um milhão.

Algumas seitas fundamentalistas abraçaram imediatamente o conceito, pois acham que a ELS conseguirá fornecer uma prova material da existência de Deus (quem mais iria codificar a Bíblia inteira, uma tarefa absolutamente hercúlea ?). O bafafá já está armado, mesmo porque a esmagadora maioria de matemáticos e estatísticos não acredita nesse tipo de coisa. Segundo eles, dado um texto suficientemente longo, praticamente qualquer coisa pode aparecer. A metáfora é conhecida como "Os Macacos do Museu Britânico" e que foi proposta por um cientista inglês no começo deste século, Sir Rutherford. Na sua versão quase cômica, um cientista resolve encher o saguão do Museu Britânico com mihares de macacos datilografando letras totalmente ao acaso em máquinas de escrever. A hipótese é que ao longo do tempo, existe uma probabilidade de que a obra inteira de Shakespeare (ou de qualquer outro autor), será escrita por um dos macacos ! Pode-se até calcular quanto tempo decorrerá, em média, para que isso aconteça.

Para provar que o acaso também nos prega peças, outro matemático, não tão místico quanto Rips e Drosnin, aplicou o método ELS a outros tipos de textos, como a uma lista telefônica, e também descobriu várias "mensagens" ocultas. Como disse a revista "Time", em um artigo recente sobre a polêmica, "propor uma autoria divina para elas levaria a uma deidade realmente muito brincalhona".


 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,.8/7/97

Autor: Email: sabbatin@nib.unicamp.br
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