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Apartheid Digital

 

Renato Sabbatini

Um novo tipo de destituído está aparecendo nos países pobres: o sem-computador, o sem-internet. "Apartheid" é uma palavra do idioma falado pelos Boers, imigrantes de origem holandesa e belga da África do Sul, e significa separação, manter apartados. Evidentemente, o termo se refere ao odioso sistema de segregação entre a raça branca e as demais, até a democratização do país e o início do governo do grande Nelson Mandela. Apartheid digital é a expressão que a imprensa mundial vem usando para caracterizar o grande abismo de diferenças que está se formando entre a parte da população que usa computador, acessa a Internet, etc., e os que não têm acesso a esses recursos. Como, hoje em dia, ter conhecimentos de informática é quase tão importante quanto saber ler e escrever, este abismo vai produzir, mais uma vez, uma legião de pobres sem capacidade de progredir na vida.
 
Os números são eloqüentes. Por exemplo, no Brasil, 83% das pessoas que declaram imposto de renda possuem um computador. Dos que usam Internet, 80% são das classes A e B, 16% da classe C e apenas 4% da classe D. As diferenças entre os países ricos e pobres são ainda mais gritantes. Mais de 90% dos computadores ligados à Internet estão nos EUA, Canadá, Comunidade Européia e Japão. No Brasil, apenas 2,5% da população têm acesso à Internet, enquanto que nos EUA são 60% da população, em todas as faixas etárias. Nos Estados Unidos, 100 milhões de adultos e 25 milhões de crianças e jovens usam a Internet, e 95% das escolas primárias e secundárias montaram laboratórios de informática para seus alunos.
 
Os números não chegam a ser surpreendentes, pois eles refletem exatamente a distribuição de riqueza nesses países. Se olharmos um mapa com a densidade de servidores da Internet (servidores são computadores ligados permanentemente à rede, e aos quais se ligam os computadores dos usuários, como no caso de um provedor de acesso à Internet, por exemplo), ele coincide quase que exatamente com o poder aquisitivo per capita médio. Se acendêssemos uma luzinha para cada servidor ativo, a América do Norte e a Europa se transformariam em uma vasta massa iluminada. A América Latina teria aqui e ali alguns focos intensos de luz, como no Sudeste e Sul do Brasil, Argentina e Chile. A África e boa parte da Ásia seriam uma escuridão só, com poucos pontinhos de luz aparecendo aqui e acolá.
 
Alguma coisa precisa ser feita para mudar essa situação, evidentemente. Precisamos de um novo "programa Mobral" de alfabetização computacional para as camadas C e D, mas, mais do que isso, elas precisam receber recursos para poder ter acesso à tecnologia. O governo brasileiro vem agindo principalmente no setor educacional, ao colocar computadores em cerca de 200 mil escolas de nível médio e acesso à Internet em cerca de 70 mil escolas. Isso vai ter um grande poder de transformação em poucos anos.

O terceiro setor também vem se movimentando. Aliás, o Brasil tem um modelo de ensino de informática para as populações carentes que está sendo elogiado em todo o mundo, e adotado em muitos outros países. Trata-se das Escolas de Informática e Cidadania (EIC), iniciadas no Rio de Janeiro de forma modesta e com recursos próprios e de algumas empresas que se dispuseram a ajudar, pelo jovem Rodrigo Baggio, que tinha na época 24 anos de idade. Recentemente, Rodrigo foi eleito uma das 50 personalidades jovens mais influentes da América Latina, pela revista Time, em virtude do seu trabalho. Atualmente já existem 130 escolas EIC em 15 estados, a maioria em favelas e comunidades carentes, e cerca de 30 mil jovens receberam treinamento nessas escolas. Além de informática, os alunos recebem noções e participam em discussões sobre meio ambiente, saúde e cidadania, e são incentivados a mudar de vida e progredir através do estudo. Depois das dificuldades iniciais de praxe, Rodrigo conseguiu chamar a atenção das grandes empresas, e hoje conta com o apoio da Microsoft, Esso, SSI, Xerox, IBM, etc. A Fundação StarMedia, estabelecida pelo portal latino-americano de mesmo nome, agora quer levar o modelo desenvolvido pela EIC para a Colômbia, Uruguai e México, e a está apoiando também.
 

Este é um exemplo magnifico de como a sociedade e as empresas cidadãs podem contribuir para melhorar o mundo em que vivemos. Está provado que o fator social mais importante para tirar as pessoas da pobreza é a educação. O investimento nessa área tem retorno comprovado, inclusive econômico, ao ampliar o mercado para as empresas. Um jovem que aprende a usar computador, fatalmente vai querer comprar um para ele. Imaginem a diferença que iniciativas como o do jovem Baggio fazem na vida de tantas pessoas. O acesso gratuito à Internet vai ser um grande incentivo, também, mas antes as pessoas precisam ter computador, linha telefônica e dinheiro para pagar as contas. Os portais, que estão gastando quantidades indescritíveis de dinheiro, poderiam muito bem dedicar parte de seus orçamentos ao desenvolvimento de conteúdos para as classes C e D. Ninguém sabe como fazer isso, ainda, pois tudo na Internet é dirigido para as classes mais abastadas. Vai ser um desafio muito interessante!

Para Saber Mais



Renato M.E. Sabbatini é professor e diretor associado do Núcleo de Informática Biomédica da Universidade Estadual de Campinas, colunista de ciência do Correio Popular, e colunista de informática do Caderno Cosmo. Email: sabbatin@nib.unicamp.br

Veja também: Índice de todos os artigos anteriores de Informática do Dr. Sabbatini no Correio Popular.



Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 30/6/2000 .
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