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Assassinos da história

Renato M.E. Sabbatini

Durante milhares de anos, o principal meio de armazenamento de informação usado pela Humanidade tem sido o papel. Embora ele não seja imune aos estragos do tempo, a prova de que o papel é um meio altamente eficiente e duradouro são os livros e pergaminhos produzidos há mais de mil anos atrás, que continuam sendo legíveis e, em muitos casos, bem preservados em museus.

A era da comunicação eletrônica, entretanto, trouxe um dilúvio de novos meios de registro: fitas e discos magnéticos, discos de vinil, CD's, etc. Ao contrário do papel impresso, entretanto (que não necessita nada mais do que nossos olhos e uma iluminação razoável, para ser lido), cada novo meio trouxe a necessidade de um dispositivo eletrônico para converter a informação nele armazenada para um formato que possa ser captado diretamente pelos nossos sentidos: toca-discos, toca-fitas, leitores de discos magnéticos e óticos, etc. E esse é que é o problema. O astrônomo Clifford Stoll, autor do livro "Silicon Snake Oil", cita o fato de que os dados recolhidos pela sonda interplanetária Pioneer, da NASA, foram armazenados em quatro formatos digitais diferentes. Nenhum deles pode ser lido atualmente, por não existirem mais equipamentos capazes de fazer isso: ficaram totalmente obsoletos. Stoll diz: "pensem quantos formatos foram extintos: discos de 78 rotações, fita de vídeo de duas polegadas, cilindros fonográficos, fita de papel perfurada, cartões perfurados de 80 colunas e de 100 colunas, disquetes de 8 polegadas, fita digital de 7 trilhas, fita de áudio de carretel, cartuchos de 8 trilhas, DECtape, filmes de 8 mm, slides de vidro... E então, pensem ainda nos formatos que estão começando a desaparecer atualmente: discos de vinil de 45 rpm, disquetes de 5 1/4, fitas de vídeo Betamax...".

Não é difícil imaginar que, dentro de uns quatro ou cinco anos, todos os milhões de CD-ROMs existentes atualmente, fitas DAT, disquetes de 3 polegadas, e outros meios em existência, também ficarão obsoletos e não poderão ser lidos. O leitor pode argumentar: bom, mas esse é um problema fácil de resolver ! Basta transferir periodicamente toda a informação armazenada digitalmente para meios mais modernos. Fácil de falar, mas difícil de fazer... Eu mesmo tenho ainda caixas de cartões perfurados, com dados de minha tese de doutorado, feita em 1977, que gostaria de reanalizar um dia. Não vou conseguir, pois nunca tive a oportunidade nem o tempo de transferir o seu conteúdo para disquetes de 8 polegadas, e depois para disquetes de 3 1/2 (meu computador atual já não tem drive para ler os disquetes de 5 1/4 !). Felizmente, ainda guardo os protocolos de registro em papel, e terei que redigitar tudo de novo.

Outro exemplo ? Pensem nos milhares e milhares de discos de 78 e 45 rotações contendo obras musicais em gravações que nunca foram e nunca serão transferidas para meios mais modernos. Será um acervo histórico absolutamente impressionante, perdido para sempre, pois daqui a algumas décadas provavelmente existirão apenas em museus os toca-discos necessários. Não compensa economicamente replicar todo esse acervo em novos formatos.

Ainda conseguiremos ler um papiro caldeu, contendo inscrições de três mil anos atrás, armazenado no Museu Britânico, mas não conseguiremos ouvir uma canção gravada em 1930 ! Como vêm, não é um problema fácil de resolver, e nem creio que haja interesse em resolvê-lo, pois é própria da revolução digital essa busca por meios de capacidade e de velocidade de gravação e leitura cada vez maiores.

Mas não deixa de ser curioso que é justamente essa revolução, que está nos fazendo entrar numa era de informação pura e cada vez mais volumosa, que será a assassina da história...


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 16/7/96.
Autor: Email: sabbatin@nib.unicamp.br

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