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Cyc, o magistrado

Renato M.E. Sabbatini

Uma cena de ficção científica: duas mulheres que estavam brigando pela posse de uma criança se apresentam perante um imponente juiz de direito, o todo-poderoso magistrado Cyc. Depois de apresentados todos os argumentos e evidências pelos advogados, testemunhas e litigantes, o Dr. Cyc se manifesta salomonicamente e sua decisão aparece na tela do computador onde “vive”. Cyc não é um ser humano, é um programa de computador, um programa tão inteligente e sábio quanto cem experimentados juizes de direito, juntos...

Ficção científica ? Nem tanto, se aguardarmos mais alguns anos. Em uma cidade do Texas, um grupo de pesquisadores, liderados por um dos “pais” da Inteligência Artificial, o professor Douglas Lenat, trabalha há dez anos, ininterruptamente, na construção de Cyc (seu nome é uma corruptela de encyclopaedia). Ele é um programa que procura implementar o que os americanos chamam de “common sense”, ou o conhecimento comum que todas as pessoas têm. Um exemplo: todo mundo, até crianças pequenas, sabem que se soltarmos um objeto no ar, ele tende a cair em direção à terra. Não é necessário saber física para isso: é um conhecimento que pertence ao estoque das coisas elementares que armazenamos no nosso cérebro, e que se acumulam continuamente por toda nossa vida. Lenat propõe, convincentemente, que nenhum programa de computador poderá ser considerado inteligente, se: 1) não for capaz de aprender continuamente; 2) não tiver o tal de “common sense”. A equipe de Lenat tem feito exatamente isso: alimentar Cyc de fatos e conhecimentos, usando uma estrutura de dados chamada rede semântica. Por meio dessa rede, é possível fazer com que o programa deduza automaticamente, sem necessidade de ser “explicado”, relações lógicas complexas entre objetos, idéias, conceitos, propriedades, relações causa-efeito, etc. De acordo com Lenat, quando Cyc ultrapassar cerca de 20 milhões de relações e fatos, ele ultrapassará a barreira dos artefatos e ficará subitamente inteligente. Atualmente o programa acumula cerca de 3 milhões de conceitos e 10 milhões de relações.

Não faz muito tempo, Lenat foi o pivô de uma enorme polêmica nas páginas da revista Computer, do prestigioso IEEE (Institute of Electric and Electronic Engineers), ao propor justamente o cenário a que me referi acima. Segundo ele, em poucos anos Cyc terá um repositório tão sofisticado e extenso de conhecimento, que será capaz de emitir julgamentos cheios de “sabedoria” humana e jurídica. E disse mais: se um juiz Cyc for mesmo melhor que um ser humano, ele acha que deveria ser obrigatório o seu uso em cortes de justiça, substituindo juizes humanos !

Desnecessário dizer que muita gente discordou radicalmente de Douglas Lenat. Aliás, a maioria dos cientistas que trabalha em IA não acredita que as redes semânticas sejam a maneira única e ideal de representar o conhecimento humano completamente. Para dar um exemplo banal: nenhuma rede semântica é capaz de reconhecer a face de uma pessoa ! Para isso é necessário usar uma outra tecnologia, mais avançada: a das redes neurais artificiais, que procuram imitar como o nosso cérebro é organizado. Outro problema é como deverá ser a forma de interação de Cyc com seu usuários ou “consulentes”. Para que ele seja realmente efetivo, será necessário que ele entenda a linguagem natural dos seus interlocutores, perguntando e respondendo.

A tecnologia de reconhecimento de voz já está ficando quase madura, e os melhores sistemas usam redes neurais artificiais para fazer isso. Portanto, deverá haver uma convergência de tecnologia em futuro não muito distante, que terão o potencial de revolucionar completamente o mundo em que vivemos. O tempo dirá.


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 13/8/96
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