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Democracia eletrônica

Renato M.E. Sabbatini

Esse programa da TV Globo, "Você Decide", tem pelo menos um mérito: serviu para provar que a democracia eletrônica é totalmente inviável.

Explico: com o progresso da Informática, não está muito longe o dia em que, nos países mais desenvolvidos, todas as casas terão um terminal de computador ligado a uma imensa e tentacular rede. Na França, por exemplo, o sistema Minitel, que corresponde ao nosso videotexto, tem mais de seis milhões de terminais instalados nos lares, escolas e empresas, substituindo a lista telefônica. Milhares de serviços de fornecimento e intercâmbio de informação, desde compras a domicílio, até clubes de encontros sexuais, são oferecidos pela rede.

Não é preciso ter muita imaginação para antever que esse sistema poderia ser usado para instituir a votação maciça e instantânea, não só para a eleição de governantes e representantes da população, mas também para plebiscitos sobre qualquer assunto que se apresente. Parece muito fácil: por exemplo, vai o presidente à televisão em horário nobre, e pergunta ao povo se ele acha que, digamos, a pena de morte deve ser adotada no país. Quinze minutos mais tarde, os computadores se encarregam de apresentar os resultados finais, contra ou a favor, e uma lei é promulgada. Com essa perspectiva, muitos visionários da era das comunicações eletrônicas chegaram a propor a idéia de uma democracia participativa radicalmente diferente, que dispensasse os tradicionais intermediários (vereadores, deputados, senadores). Uma gigantesca e confortável Suiça. Votar sem sair de casa. Querem maior maravilha ?

O programa "Você Decide" mostra muito bem a inconveniência, e até o perigo, da idéia. Em todos os programas, uma situação maniqueísta é apresentada: você roubaria o dinheiro do banco ? Você contaria para sua mulher ? Na maioria das vezes, a decisão popular, medida pelo número de telefonemas contra ou a favor, foi ética ou moralmente indefensável, ou até criminosa. Um verdadeiro espanto.

Isso prova que o brasileiro anda com os padrões morais baixos, influenciado pela impunidade dos PCs da vida ? Não. Resultados semelhantes foram obtidos em outros países, com nível educacional muito maior do que o nosso. O que acontece é que o imediatismo da resposta, facilitado pela tecnologia, encoraja a resposta emocional, influenciada pelas condições do momento. Cria-se uma falsa sensação de participação, na qual o individualismo predomina, e não o bem da sociedade como um todo. O sistema atual, em que você tem que assistir uma campanha política de vários meses, sopesar os prós e contras, sair de casa e colocar um papelzinho numa urna, ainda é infinitamente melhor, porque cria um distanciamento, um convite ao raciocínio e o abandono da emoção.

Há alguns anos atrás, foi realizada numa cidade dos EUA, na fronteira com o Canadá, uma experiência de comunidade totalmente interligada eletronicamente. No Japão também existe um projeto desse tipo, na cidade de Tsukuba, que se caracteriza pelo fato de 90 % das famílias terem computador, telefone e televisão. Um dos primeiros problemas foi como controlar a fraude (pessoas votando várias vezes), mas com um povo bem educado isso ainda pode ser resolvido. O pior eram as decisões, muitas vezes totalmente ilógicas, e até maléficas para a própria sociedade. Dependendo de quem defendia, e como defendia uma idéia, o resultado era totalmente diferente. A manipulação maliciosa da massa, via TV, se tornava extremamente fácil e perigosa. Notem que o debate não era bidirecional, só a votação ! Outra decepção foi o enorme nível de alienação da população. As votações mais concorridas representaram menos de 10 % dos eleitores.

A conclusão é que o essencial da democracia não é a possibilidade de votar, instantaneamente ou não, mas sim o entrechoque de idéias, o debate construtivo e a mudança de opiniões que se segue a ele. As pesquisas que antecedem as eleições, com suas curvas ascendentes e descendentes, embora bem mais primitivas do que a tecnologia atual permite, ainda são muito mais úteis.

Tanto é assim, que os franceses, que inventaram o poder do povo, nem sequer pensaram na possibilidade de usar o Minitel para votações e plebiscitos. E os suiços, que tem a democracia mais antiga do planeta, ainda preferem vestir suas roupas domingueiras e ir votar na praça, usando o prosaico recurso do braço levantado...


Publicado em: Jornal Correio Popular, 30/7/92, Campinas,
Autor: Email: sabbatin@nib.unicamp.br
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