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Informática, Educação e Modernidade

Renato M.E. Sabbatini

Segundo o dogma liberal que vem dominando o país na década dos 90, o Brasil conseguirá atingir a modernidade basicamente através da abertura da economia brasileira ao exterior, com a diminuição da presença do Estado na sociedade, e com o laissez-faire capitalista em todos os níveis. De leve, menciona-se no problema da autonomia tecnológica, no aumento da competitividade industrial, e na capacidade exportadora. Os modelos em voga são o Japão e os "tigres asiáticos", ou seja, Coréia do Sul, Formosa, etc. ("ignora-se" solenemente o fato de que estes modelos já estão fazendo água há um certo tempo, como demonstram os sucessivos déficits comerciais da Coréia do Sul, ultimamente).

Alguns programas, como o PCI (Programa de Competitividade Industrial), começaram a pipocar recentemente, mas tem ficado só nas boas intenções, pois, como sempre, não são acompanhados de investimentos adequados, e se defrontam com uma descrença generalizada, por parte da sociedade, na capacidade do governo de vir a implementá-las seriamente, algum dia. Silêncio quase total sobre os enormes problemas de: 1) educar o povo para poder atingir essas metas, e 2) aumentar o nível de renda per capita anual para algo em torno de 10.000 dólares (atualmente é cinco vezes menor, e nunca foi tão baixo). Sem essas duas coisas, não dá nem para pensar em entrar no "clube" dos países desenvolvidos, o chamado primeiro mundo, das citações tão eloqüentes do dignatário máximo da nação. A má notícia é que elas não podem ser conseguidas em pouco tempo: um mínimo de 40 anos, se, por imensa felicidade, voltarmos às taxas brasileiras históricas de crescimento, da década dos 70.

Todo mundo sabe que nenhum país do mundo pode ter a ambição de entrar neste seletivo "clube", se não investir pesadamente com o objetivo de dominar, de forma autônoma, a ciência e tecnologia. Parece que só o governo federal é que não sabe disso. Nós não só não estamos fazendo isso em nível adequado, mas ainda:

- o investimento do governo em C & T caiu aos seus níveis mais baixos dos últimos 20 anos;

- está sendo destruído, de forma acelerada, o único programa de autonomia tecnológica que deu certo, o da Informática nacional, que é (ou era ?) a inveja de todos os países em desenvolvimento, e de muito países ditos desenvolvidos.

O Brasil é (ou era ?) um dos três únicos países com uma indústria de Informática capaz de cobrir mais de 50% do mercado interno (os outros são o Japão e Estados Unidos). Vem o novo Executivo federal, e, na sua ânsia de "modernidade", aniqüila mais de 80 % dos intrincados dispositivos da Lei Nacional da Informática, não colocando nada no lugar. Resultado: o contrabando, como todos sabem, aumentou vertiginosamente, sem restrições, e já cobre 60 % da demanda nacional. Sem pagar impostos, sem montar fábricas e contratar gente, e sem investir um tostão furado em pesquisa e desenvolvimento. Não é a toa que os seus produtos custam muito mais barato do que os nacionais !. As indústrias nacionais, construidas tão penosamente ao longo da última década, correm o risco de fechamento, ou pior, de "suframização", como aconteceu com a outrora independente indústria nacional de televisores. É estarrecedor.

Outro problema crítico é o da formação e de aproveitamento dos recursos humanos especializados em tecnologia, assunto esse de especial interesse para nós, na Universidade. Este foi um ponto falho da ação governamental passada, no sentido de escorar o desenvolvimento da Informática. Investiu-se pouquíssimo. O resultado é duplamente perverso: primeiro, mesmo que, por obra e graça do Espírito Santo, tivessemos condições razoavelmente imediatas de nos transformarmos em uma potência exportadora de bens de alta tecnologia, como o Japão, não teríamos pessoal capacitado para a criação tecnológica. Em segundo lugar, as poucas Universidades que formam técnicos de nível próximo ao internacional, como a USP e a Unicamp, estão vendo seus alunos recém-formados em Engenharia Eletrônica e Computação se desesperarem, por não mais encontrarem emprego (coisa impensável até o ano passado, quando as indústrias nacionais e multinacionais de peso, como a Itautec, IBM, etc., recrutavam seus futuros engenheiros ainda no 4° ou 5° anos de faculdade). A derrocada do mercado de trabalho nessa área passa a ser causada pelo massacre da indústria nacional, que já chegou a empregar 60.000 pessoas, a maioria de nível superior (por culpa da recessão e do desincentivo, este número já caiu em mais de 20 %).

A importância crucial dos recursos humanos é bem exemplificada pelo caso recente da Índia, país paupérrimo, mas que sempre procurou formar uma quantidade astronômica de engenheiros, matemáticos e cientistas de boa qualidade. Pois bem, nos últimos dois ou três anos, a Índia tornou-se uma potência mundial no desenvolvimento de "software" (programas para computador), exportando talento e produtividade em grandes volumes para os países desenvolvidos. As maiores empresas de computadores do Japão, "tigres asiáticos", Estados Unidos e Europa estão contratando todo o seu desenvolvimento de software na Índia, gerando uma receita estimada hoje em mais de 1 bilhão de dólares anuais, pois sai muito mais barato (o salário de um PhD altamente capacitado na Índia é 3 a 4 vezes menor do que nos países mais ricos), e a qualidade é igual à produzida nos países de origem.

Essa notícia nos leva a realizar um doloroso exercício de auto-análise. Porque isso não aconteceu conosco, os brasileiros, de jamais tão decantada criatividade e inteligência ? A última Feira Internacional de Software mais parecia um bazar de produtos estrangeiros, mostrando o grau de destruição da competência nacional em tecnologia de software, que representa justamente o mercado do futuro. Hoje, mais de 80 % dos custos de um sistema informatizado são devidos à compra, desenvolvimento e manutenção de programas. É simplesmente absurdo que não tenhamos podido vencer em nível internacional, nem em um campo onde somente o cérebro é que conta, e não equipamentos sofisticados. Não dá para se conformar com essa situação.

Outro "furo n'água" (aliás, sobre o qual, lançado com grande estardalhaço no ano passado, nada mais se falou ou se fez), foi a ridícula proposta da se dar dinheiro do governo para as indústrias comprarem serviços de pesquisa e desenvolvimento das Universidades. Ora, as indústrias são movidas por interesses e escalas de tempo totalmente diferentes dos da Universidade. Ainda bem que não deu certo, pois senão elas estariam usando esse dinheiro para pagar contratos de "royalties" tecnológicos com empresas estrangeiras, o que, do ponto de vista delas, seria muito mais sensato e viável. E, supondo que fossem obrigadas, mesmo, a realizar o investimento nas Universidades brasileiras, não demorariam a surgir mil "esquemas", "mutretas" e "notas frias", corrompendo e deturpando definitivamente o pouco que resta das combalidas Universidades.

Conclusão: enquanto a elite dirigente do país não acordar para o problema do desenvolvimento científico e tecnológico da nação, estaremos deixando passar o bonde da modernidade, que não tem estribo para dar carona, e que cobra a passagem cada vez mais caro (principalmente para os que ficam para trás). Modernidade não é escancarar o país para as importações "caixa-preta", ao mesmo tempo devastando a já parca capacidade brasileira de gerar tecnologia própria. Modernidade é, sim, reconhecer que o futuro de uma nação que pretende sair do atoleiro do terceiro mundo depende da valorização de uma C & T independente, e da preocupação com a construção à longo prazo de um povo educado. O resto é simplesmente retórica.


Publicado em: Jornal "Indústria & Comércio", Curitiba, PR, 19 de fevereiro de 1992.
Autor: Email: sabbatin@nib.unicamp.br

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