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Ciência Perdida na Argentina

 

Renato Sabbatini

Esta semana a Argentina elegeu o seu novo presidente. O resultado pode ter uma importância muito grande para nosso grande vizinho e parceiro no Mercosul, com relação à área de Ciência e Tecnologia.

A Argentina já foi um grande exemplo para o Brasil. Até o golpe militar do General Onganía, embora o país tivesse passado por uma sucessão de instabilidades políticas, a comunidade científica argentina era bem organizada e de influência considerável no continente e no mundo. Basta dizer que o país tem três premiados pelo Nobel em ciências, Bernardo Houssay (1947), Luiz Frederico Leloir (1970) e César Milstein (1984), enquanto que o Brasil (e todos os demais países da América Latina) não têm nenhum. Eu tive o privilégio de realizar minha iniciação científica em ciências fisiológicas na USP de Ribeirão Preto com um grande e admirável cientista e humanista argentino, o Professor Miguel Rolando Covian, que foi discípulo e colega de Bernardo Houssay, no Instituto de Biologia y Medicina Experimental, um centro de pesquisas biomédicas que ele montou com recursos particulares e de fundações em uma casa de Buenos Aires, depois de ter tido problemas com a ditadura argentina em 1943 na Universidade de Buenos Aires, onde era professor e diretor do Instituto de Fisiologia. Houssay foi o iniciador de uma grande escola de pesquisa experimental de bom nível, que até hoje exerce sua influência e tem ramificações em muitos países da América Latina.
 
 
Bernardo A. Houssay
1887-1971
 
Luiz Frederico Leloir
1906-1987
César Milstein
1927-
 

Com a subida dos militares radicais ao poder e o início da “guerra suja”, houve uma destruição generalizada da ciência e da educação argentinas. Professores foram demitidos, perseguidos e censurados, os estudantes foram reprimidos, e os militares efetivamente mandavam dentro da universidade e dos institutos de pesquisa. Alguns institutos de pesquisa foram, por motivos estratégicos e militares, transformados em instituições semi-secretas, com verbas vultuosas. É o caso da área de pesquisa nuclear, que realizou projetos visando a construção de bombas atômicas e de reatores nucleares para fins militares, e que recrutou a fina flor dos físicos argentinos (que não tivessem problemas ideológicos, evidentemente).

O resultado é que houve uma enorme fuga de cientistas argentinos para outros países. Grandes talentos (e a Argentina os tinha em grande quantidade), essenciais para o desenvolvimento do país, foram dar suas contribuições em outros lugares, inclusive no Brasil. A UNICAMP foi uma das beneficiárias dessa migração, e uma coisa interessante que aconteceu apenas com os cientistas argentinos, uruguaios e chilenos que fugiram das ditaduras militares, é que a maioria deles acabou ficando em seus países adotivos e nunca mais voltou, gerando uma perda muito maior (isso aconteceu bem menos com os cientistas brasileiros, que ao serem anistiados e ao retornar a democracia, voltaram em grandes números).

Quando Juan Perón voltou ao poder (e depois da sua morte, sua mulher), o descaso em relação à ciência e tecnologia continuou, pois os peronistas nunca deram importância à essa área, e nunca tiveram nenhum plano estratégico e de investimentos digo do nome. Agora a destruição maciça tomou outros nomes: desvalorização dos salários e da carreira docente, massificação do ensino (não existe vestibular para a universidade pública, entra quem quer e sai quem consegue sobreviver) e mediocrização geral daquela que foi uma das melhores universidades da América Latina. Se alguém acha que isso não poderá acontecer nunca no Brasil, então deve olhar o exemplo argentino, que de forma nenhuma é único em nosso continente.

Infelizmente a situação não melhorou muito quando foi restaurada a normalidade democrática no país, em 1982. O Partido Justicialista e Menem continuaram sem planos e sem medidas realmente eficazes para melhorar a situação da ciência e da tecnologia. Um dos motivos principais é que o governo tem uma visão simplista (e perigosa): ele acha que o negócio é simplesmente comprar no mercado internacional toda a tecnologia que o país precisa, e que a ciência autônoma se torna desnecessária, sendo descartável. Faz quem quer, sem muito suporte ou fomento (o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, equivalente ao nosso CNPq, simplesmente não funciona).

Outro fator agravante é que a ênfase na qualidade da educação (que, evidentemente, não pode ser boa na universidade pública, com os salários que ela paga) está se deslocando para as universidades privadas, que surgiram em grande número durante o governo Menem (por exemplo, Buenos Aires tinha somente uma Faculdade de Medicina até o início da década, hoje tem oito, com exame vestibular e turmas pequenas: um curso de medicina custa 2 mil dólares por mês. Lembram-se do “efeito vodka”? (“eu sou você amanhã”). Pois bem, se não tomarmos cuidado, ele acontecerá aqui também. Aliás, já está acontecendo.

Vamos ver agora o que acontece com o novo governo nessa área. De La Rúa é bem diferente de Menem: antes de tudo é um professor universitário de longa experiência na universidade pública (ele ensinava direito). Aparentemente ele está com bons assessores para o seu programa de apoio à ciência e tecnologia. Mas sente-se ainda a falta de uma verdadeira valorização, como acontece no Brasil, pelo menos em teoria, e nas organizações governamentais de fomento à C&T efetivamente criadas por aqui (o problema é a grande distância entre a teoria e a prática...).

É uma grande tristeza ver um país que já deteve a liderança cientifica e intelectual da América Latina ser reduzido a este penoso estado de coisas.

P.S.: Além de Houssay, Leloir e Milstein, a Argentina detém dois premiados pelo Nobel da Paz (Carlos Saavedra Lamas e Alfredo Perez Esquivel).


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  5/11/99.

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