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Pavores de fim de século

 

Renato Sabbatini


Desde o ano passado a Internet, o último recurso dos que não têm voz, está inundada de toda sorte de informações sobre o final catastrófico que se aproxima para a espécie humana e o planeta. A escolha das catástrofes é ampla, e nem sempre são seitas malucas que divulgam essas informações. Recentemente, um e-mail espalhado em larga escala anuncia uma “Grupo do Milênio”, supostamente formada por cientistas, que teria detectado e “comprovado científicamente” uma série de ameaças, que coincidentemente vão ocorrer todas mais ou menos ao mesmo tempo na data final prevista por Nostradamus para o 1999.

A primeira dessas ameaças seria um cometa misterioso, cuja órbita os cientistas “não conseguem determinar com precisão”, e que por isso poderia estar em rota de colisão com a Terra. Também os relatos falam de que esse cometa estaria alterando dramaticamente o balanço energético do sol, provocando explosões que vão nos prejudicar com irradiações centenas de vezes mais intensas do que o normal, que iriam afetar toda a vida. A segunda ameaça é um alinhamento rarissimo de vários planetas, o que causará um aumento da força gravitacional dos mesmos sobre a Terra, levando a maremotos, terremotos, erupções vulcânicas e marés gigantescas. Uma eclipse total do sol, que acontecerá em setembro, “poderia piorar muito o efeito do alinhamento”. A terceira é uma colisão da astronave Cassini com a Terra, que foi lançada pela NASA há alguns anos atrás e que estaria fazendo um “fly-by” por aqui para receber um empuxo gravitacional, uma espécie de empurrão para levá-la a planetas mais distantes do sistema solar. A Cassini tem uma pequena unidade de energia nuclear com 32 quilos de plutônio altamente radiativo, e segundo os boatos, esse plutônio poderia explodir com força igual a 10.000 bombas atômicas iguais a de Hiroshima, e, pior, se liberado na atmosfera poderia “matar milhões de pessoas e causar câncer e outras doenças em dezenas de milhões”.

Já tive a oportunidade de escrever aqui que esses boatos são típicos da "corrente paranóide" que atravessa atualmente toda a Internet, devido à grande facilidade de espalhar textos apócrifos. Partem de grupos ou pessoas que acreditam piamente em conspirações, segredos terríveis, complôs para destruir tudo, etc., a maior parte totalmente inventados, as vezes por gozação ou interesse financeiro, mas que se transformam em “verdades”. Chega a ser patético, se não fosse assustadora a dose de desinformação total e falta de conhecimento científico. Nenhum pessoa minimamente séria encara esse tipo de "corrente" sem uma boa dose de ceticismo. Para piorar, estamos não só mudando de século, mas também de milênio, o que dá uma dose adicional de excitação às imaginações já anormalmente excitadas e excessivamente crédulas de muita gente.

Já está mais do que provado de que tolices supersticiosas como essas, trasvestidas de ciência, populam a midia na virada dos séculos, desde o ano 1000, quando o Cometa de Halley foi encarado como sinal de
tragédias terriveis que se abateriam sobre a humanidade. E realmente parece ter sido verdade: a Grande Peste, por exemplo, veio apenas 360 anos depois...

É facilimo destruir toda essa bobagem milenarista, principalmente aquelas que se apregoa ter fundamentos científicos.

Sobre a primeira “catástrofe”: como um simples cometa, com uma massa milhões de vezes menor do que a do Sol, e composto basicamente de gelo, poderia provocar alterações na física solar? Ora, ora... Além disso, não existem cometas com órbita desconhecida. Se ele for visualizado por algumas noites ou semanas consecutivas, a determinação da órbita é questão de simples matemática. Ou então, as leis de Kepler e Newton não estão valendo mais!

No caso da astronave Cassini, a previsão ignora totalmente tudo o que se sabe sobre física e é ainda mais ridícula do que a do cometa. Para ocorrer uma explosão nuclear da magnitude alardeada, precisaria acontecer um evento crítico na massa de plutônio, desencadeando uma reação de fissão nuclear em cadeia. A chance disso acontecer sem uma carga explosiva externa, como acontece numa bomba atômica, é zero. Aliás, a nave Cassini não vai colidir com a Terra, pelas mesmas razões matemáticas do cometa: a Terra teria que sair por alguns meses de sua órbita atual para que isso aconteça. Mas, se colidir, ela se desintegraria quase que totalmente em atrito com a atmosfera, e meros 32 quilogramas de plutônio se dispersariam em uma massa atmosférica trilhões de vezes maior. Diluição total, portanto. A radiação que atingirá a superfície da Terra seria menor do que a dos raios cósmicos do dia-a-dia.

Quanto ao alinhamento de planetas e eclipses, trata-se de eventos astronômicos superdistantes da Terra, sem qualquer efeito sobre a física terrestre. Uma folha de papel de jornal a meio metro do seu  rosto exerce mais força gravitacional do que o planeta Vênus. Mesmo que todos os planetas solares se alinhassem, o efeito combinado sobre a Terra seria uma fração infinitesimal do que é causado pela Lua. E, ao que se sabe, ninguém está morrendo aqui por causa disso, faz muito tempo.

E por falar em “Grupo do Milênio”. Ela existe mesmo, e na Internet... (www.millenngroup.com). É lotado de informações aparentemente científicas, mas as previsões catastróficas ficam por conta da credulidae de quem lê. Talvez seja melhor o leitor acessar outro site, este bem melhor, da Sociedade de Estudos do Milênio (www.mille.org), cujo objetivo  é estudar o comportamento milenarista e suas causas, mas jamais apregoar que as profecias cataclísmicas são verdadeiras.

E o mundo realmente não acabou no dia 11 de agosto de 1999, como acreditavam os profetas do Apocalipse, os crédulos que levam a sério esse tal de Nostradamus, e tantos outros místicos, esotéricos e cultores dos pavores de fim de século (o que é muito engraçado, pois séculos, ao contrário de dias e de anos, são meras convenções humanas, sem nenhuma contrapartida no mundo natural. Não é final de século nem de milênio para os que não são cristãos, por exemplo, mas isso não detém os "profetas"). Tampouco a última eclipse do sol do século (outro produto da imaginação desvairada da mídia, pois eclipses totais ocorrem com uma freqüência muito maior do que se imagina) e o alinhamento dos planetas causaram qualquer mal à Terra e aos seus habitantes.

Mas, infelizmente, apesar de todo o besteirol que desmoraliza totalmente essa turma, eles vão continuar a desfiar suas "predições" e a acreditar no poder místico de certas datas, posições de astros no céu e até no Nostradamus (felizmente, a próxima predição de fim de mundo feita por ele ocorrerá só prá lá do ano 3000…). Em vez de se recolherem, envergonhados, continuarão a achar datas, marcos e motivos para acreditar no inacreditável, e até morrer por causa disso (lembrem-se das seitas suicidas).

Para muita gente, essas crenças irracionais são difíceis de entender, justamente numa era onde predomina, poderosa, a força da razão, a ciência e a tecnologia. Para mim não: elas são o resultado da maneira como o cérebro humano é organizado, e uma herança bastante óbvia de nosso passado tribal e primitivo. A ciência, a lógica e a matemática, que deveriam ter afastado de vez todos esses fantasmas, do medo do invisível e do incompreensível, são aquisições recentissimas na trajetória da espécie humana. Desde que surgimos como espécie única, talvez meio milhão de anos atrás, o seu reinado começou a se instalar apenas de 500 anos para cá, ou seja, temos sido irracionais, espiritualistas e supersticiosos 99,9% da nossa história. Não devemos ficar surpreendidos com sua força, portanto. Como escreveu o escritor H.G. Wells, em um jocoso, mas profundo, diálogo ficcional entre deuses no Olimpo, a respeito do ser humano: "Dê uma chance a eles, afinal foram macacos há muito pouco tempo atrás…", diz um. "Uma vez macaco, sempre macaco…", diz o outro.

Vários antropólogos que estudaram povos e etnias mais primitivos, como os índios da América, os africanos, etc., notaram de imediato que a vida mental de seus integrantes é perfundida de misticismo e religiosidade, quase sem exceção. As tribos da América, por exemplo, acreditam que vivem em um mundo natural onde tudo que acontece é manifestação de forças invisíveis espirituais: as pedras, o fogo, os animais, as árvores, os rios, os raios e trovões, a chuva e o vento, o céu, o sol, a lua e as estrelas, etc. Os espíritos se dividem sempre em "bons" e "maus", e a religião surgiu em boa parte como uma defesa mental universal contra a perspectiva pavorosa de sermos mortais e de estarmos totalmente à mercê desses espíritos. A maioria dos sacerdotes primitivos tem como função principal proteger e livrar as pessoas de espíritos maus e assegurar a cooperação e benevolência dos espíritos bons.

Por outro lado, fenômenos mais raros e muito marcantes, como terremotos, erupções vulcânicas, cometas, eclipses, têm um lugar especial no universo espiritual do ser humano há muito tempo. Alguns deles sempre foram totalmente imprevisíveis, por sua natureza caótica e probabilística (um terremoto, por exemplo), e até hoje a ciência moderna ainda não dispõe de ferramentas totalmente confiáveis para predições a longo prazo desses fenômenos. Outros, como as eclipses, foram logo descobertas como sendo fenômenos celestes altamente predizíveis, por sua regularidade, e as primeiras civilizações, como os egípcios, chineses, maias, etc. aprenderam até a usar esse conhecimento para demarcar ciclos em seus calendários e para colocar no poder teocracias que o utilizava para dominar a população pelo terror ao desconhecido.

Em um de meus artigos passados no Correio Popular ("A Ciência Pode Prever o Futuro?") e em tantos outros em que discuti o fenômeno mental da superstição e das crenças místicas, tenho argumentado que a maior garantia para uma sociedade estável e racional é o conhecimento científico. Para nosso cérebro emocional e irracional, moldado por forças evolutivas totalmente diferentes das atuais, vivemos em mundo atemorizante, cheio de fenômenos ameaçadores e incompreensíveis. Nossa defesa tem sido, há milênios, acreditar que podemos nos proteger dessas forças através das crenças místicas e espirituais, e através das divinações, das profecias e predições sem nenhuma base racional. É exatamente isso que dá força aos astrólogos, tarólogos, etc., e é isso, também, que está por trás da credulidade aparentemente ridícula, de tantas pessoas que achavam que o mundo poderia acabar mesmo, da mesma forma que o milênio está acabando.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  6/8/99 e 13/8/99.

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