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A violência virtual

 

Renato Sabbatini

Em um estudo recente publicado nos EUA surgiu uma estatística inquietante: dos oito casos mais recentes de jovens que assassinaram colegas e professores em escolas dos EUA, sete dos criminosos tinham menos de 16 anos (dois deles tinham 12 e 13 anos de idade!) e todos gostavam de jogar videogames violentissimos, como Mortal Kombat, Blood, Doom, Quake, Carmaggedon e outros. Um dos dois garotos americanos que mataram doze coleguinhas e um professor no colégio onde estudavam, na cidade de Littleton, Colorado, deixou uma evidência macabra dessa sua preferência: em seu computador pessoal os investigadores descobriram que ele tinha personalizado uma versão do jogo Doom para máximo efeito das violências e crueldades cometidas na telinha, em cenário semelhante ao que aconteceu depois, na escola. Era o massacre anunciado, mas que não foi percebido por ninguém, colegas, professores e pais.

Não parece ser apenas uma coincidência, portanto, que o país em que existem mais armas disponíveis facilmente para a população (inclusive menores de idade), e onde foram inventados os programas de TV, filmes de cinema e videogames mais violentos, seja também o que enfrenta o maior problema de assassinatos entre os jovens. Alguém ouviu falar de mortandades como essas nas escolas de outros países mais comedidos e controlados, como o vizinho Canadá, o Japão (um grande inventor e consumidor de videogames, como Sega, Nintendo, Sony, etc.) e os países europeus? A tragédia está na confluência de um modelo social baseado na ganância descontrolada, onde o valor mais alto é o dinheiro, que tudo justifica e tudo permite.

A adição dos jovens aos videogames e filmes violentos assusta e preocupa pais, educadores e autoridades. Será que eles realmente podem ter influência sobre a escalada da violência na sociedade? A polêmica é geral: alguns pesquisadores acham que a violência vicariante ou simbólica através dos videogames não induz à violência real, e, ao contrário, até a diminuiria, ao proporcionar uma válvula de escape para jovens agressivos. Outros, como a filósofa Sissela Bok, professora da Universidade Harvard (entrevistada no número de junho da revista Superinteressante (http://www.superinteressante.com.br), que tem um excelente artigo de destaque sobre o tema) chamam a atenção para o fato de que a maioria dos estudos científicos demonstrou que as crianças são influenciadas pela exposição à violência na tela. Para ela, ocorre uma dessensibilização da criança à violência, ou seja, ela passa a aceitar como natural e "normal" o sofrimento alheio e o assassinato como meio de conseguir coisas (já notaram como em quase todos os filmes de ícones hollywoodianos, como Silvester Stallone, Arnold Schwarzenegger e outros, a luta contra os adversários "maus" justifica episódios da maior barbaridade e o uso sistemático da ultraviolência? Nem Hitler faria melhor…)

Casos de chocante violência cometidos por jovens de classe média e alta, bem educados e com suas necessidades básicas satisfeitas, como o do índio pataxó queimado em Brasilia, estão evidenciando que os jovens estão banalizando a violência e atingindo o que a Dra. Bok chama de "fadiga de compaixão". E quanto mais cedo a criança for exposta à essas situações, mais difícil será para ela separar a ficção da realidade e maior será a tendência a aceitar e julgar a violência como algo normal no relacionamento humano. Em estudos bem controlados, feitos nos EUA com crianças entre 5 e 9 anos de idade, a exposição a videogames violentos aumentou a agressividade, a indiferença à violência e a intolerância contra os semelhantes, pelo menos a curto prazo.

A exposição a filmes violentos na TV já é um vilão bem conhecido dos educadores, tanto é que existe em quase todos os países um sistema de restrição de acesso por idade ou por horário. No entanto, nada disso existe para os games violentos, que possivelmente têm uma influência negativa muito maior, pois são interativos, podem ser repetidos interminavelmente pelas crianças e jovens que os jogam, têm escalas ajustáveis de crueldade e sangüinolência e são extremamente realistas em muitos casos (cheguei a ficar com náuseas ao ver cabeças e membros arrancados, com sangue espalhado por todo lado, ruídos horripilantes, etc., em um desses joguinhos para computador). Os videogames mais populares, como Doom, são conduzidos pelo jogador "em primeira pessoa", ou seja, ele tem a visão da pessoa que está empunhando a arma e que mata com uma rapidez e selvageria impressionantes. O jogador pode escolher entre diversas armas de um amplo e variado arsenal, que inclui motoserras, por exemplo, e quanto maior a habilidade em matar sem pensar, reflexamente, maior o número de pontos conseguidos. Portanto, o comportamento violento não só é personalizado, mas torna-se conseqüente às decisões e às ações do jogador, mecanizado e desumanizado pela situação criada pelo jogo. Querem meio mais eficiente de treinamento para a violência? O que me assusta é que a meninada acha tudo isso "muito legal".

A sociedade precisa reagir urgentemente a tudo isso. É imperioso, na minha opinião, que os fabricantes de videogames estabeleçam uma escala de permissão de idades para cada produto, que as empresas que alugam videogames utilizem os mesmos critérios que utilizam para videos pornográficos, e que os videogames mais violentos tenham sua comercialização simplesmente proibida (o Ministério da Justiça proibiu o Carmaggedon, um dos games mais bizarros jamais inventados: o objetivo da corrida de automóveis é atropelar velhinhas, paralíticos, etc.).

Mas nada disso surtirá efeito se os pais não forem alertados e conscientizados para esse problema, passando a exercer um controle mais estrito sobre os videogames a que os filhos têm acesso, e por quanto tempo eles podem usá-los. Devem aprender a avaliar os videogames antes de comprá-los, a resistir a pressões para adquirir certos jogos da moda, "que todo mundo têm", e brincar frequentemente junto com as crianças, para neutralizar influências negativas. Infelizmente, os videogames se tornaram uma nova versão das babás eletrônicas, como a TV, ocupando as crianças e livrando os pais das tarefas trabalhosas de educar, orientar e tomar conta de seus próprios filhos.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 25/6/99 .

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