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A cadela altruísta

 

Renato Sabbatini

Recentemente a mídia fez um enorme estardalhaço em torno de uma cadela que salvou uma criança de um ataque de cães pitbull, envolvendo-se na briga e desviando a atenção dos atacantes. Na confusão, ficou ferida e ao mesmo tempo virou celebridade nacional. Até mesmo quando teve que ser operada, dias depois, a tevê deu-lhe mais atenção do que à queda do dólar, por exemplo.

As pessoas se emocionaram, gastaram-se rios de tinta louvando e discutindo a "valentia" e as motivações da cadelinha. Seu "gesto" de altruísmo foi discutido à náusea, em um país que, atolado em corrupções e desgraças urbanas e no espectro da ruina econômica, precisa desesperadamente de exemplos de bom caráter e de otimismo. Pena que tenha vindo de um animal assim chamado irracional…

Eu mesmo acabei me envolvendo no argumento. Ao dar uma entrevista em um programa de notícias do canal regional de tevê sobre o tema das emoções dos animais, as linhas telefônicas da transmissora ficaram assoberbadas com as perguntas de dezenas de leitores curiosos, 99% dos quais eram donos de cães, que, sem dúvida, são os animais mais próximos do homem, e que mais inspiram a impressão de que eles têm emoções e sentimentos iguais aos nossos. A isso os cientistas dão o complicado nome de "antropomorfização". Entre perguntas do tipo "meu cão morde muito o rabo, será que ele está estressado?", ou "desde que me filhinha nasceu ele ficou muito agressivo comigo, será que está com ciúmes?", evidentemente vieram várias sobre a cadela altruísta.

Infelizmente, acho que decepcionei os bons sentimentos de muitos com minha resposta. Não existem evidências de que um cão seja capaz de altruísmo, apesar dos milhares de filmes do Rin-Tin-Tin e do depoimento de muitos donos de cães que foram defendidos por eles em situações perigosas. Pelo menos não do altruísmo humano como o conhecemos, ou seja, do auto-sacrificio em favor de outro ser humano. Em sociobiologia, que é a ciência que estuda as bases biológicas do comportamento social, o termo altruísmo é usado em outro contexto, menos emocional. É apenas o rótulo que se dá a um tipo de comportamento social muito comum em todo o reino animal. As formigas e as abelhas, por exemplo, têm diversos comportamentos em que membros da espécie se matam para defender o grupo social ou um de seus integrantes, como a rainha. Pouca gente acha que formigas tenham emoções semelhantes às humanas…

Em todos os outros animais sociais, dos peixes e aves aos vertebrados superiores, a seleção natural desenvolveu algum tipo de comportamento de auto-sacrifício ou de defesa por outros membros da mesma espécie. Isso faz sentido do ponto de vista genético: se eu defendo contra a morte os outros membros da minha espécie, eu estou ajudando a preservar os genes que tenho em comum com eles, e portanto, em última análise, a sobrevivência da espécie a longo prazo. O comportamento de defesa da mãe em relação à sua prole é um dos mais evidentes, estando a literatura cheia de exemplos "emocionantes" de fatos desse tipo (aliás, notem que a cadelinha altruísta do Rio de Janeiro tinha parido recentemente e estava amamentando os filhotes quando se deu o fato. Portanto, é provável que ela estivesse agindo em defesa deles, e não da criança que foi atacada. Coincidências como essa costumam ser interpretadas pelos seres humanos de uma forma aparentemente irreal…)

Mas existem muitos casos inegáveis de defesa do dono por um cão. Várias raças de cães foram selecionadas para esse fim específico, inclusive (os cães pastores, por exemplo). Que os cães têm emoções muito semelhantes às nossas também é coisa conhecida de todo mundo: quem tem um cachorro sabe muito bem disso, e é capaz de jurar que eles "sentem" raiva, dor, medo, alegria, amor, ciúmes, culpa, arrependimento, etc. Minha prima, por exemplo, tem um vivaz poodle que parece dar risada quando ela pede, apesar desta expressão facial (e sua emoção acompanhante) reconhecidamente não fazerem parte do repertório emocional do Canis familiaris.

Os cientistas já são mais céticos. O que pode parecer um sentimento humano na superfície, por sua similaridade, pode ter outras explicações biológicas. O gesto de abanar o rabo, por exemplo, que muita gente interpreta como sinal de alegria do cão ao ver o dono, é simplesmente um ato instintivo que tem como objetivo espalhar no ar o cheiro característico de um animal para que seus companheiros o reconheçam como membro da matilha (ferormônio social), produzido por uma glândula situada na base da cauda do cão!

O cão doméstico se originou historicamente dos lobos, que são, como todos os canídeos, animais extremamente sociais, que caçam e vivem em grupo, em uma complexa teia de relações e comportamentos. Portanto, herdou de seus antepassados todos esses comportamentos, alguns dos quais são típicos de um animal subordinado ao líder da matilha. O austríaco Konrad Lorenz, um etologista (estudioso do comportamento animal) e ganhador do prêmio Nobel, escreveu um livro interessantíssimo, intitulado "Und So Kam der Mensch Auf Der Hund" ("E Assim o Homem Encontrou o Cão"), em que ele apresenta a tese de que o cão, ao ser domesticado, adotou o ser humano como o seu líder de matilha. Dai decorre o fato dele dirigir ao seu dono numerosos comportamentos característicos desse relacionamento, como virar de barriga para cima "pedindo cafuné" (é um gesto de submissão entre os lobos, que consiste em expor a parte inferior do corpo e a garganta para o dominante, com o intuito de inibir possíveis agressões), abaixar o focinho e esticar as pernas dianteiras, como que "prestando obediência" (outro gesto de submissão, feito no início de uma caçada), e vários outros. O próprio comportamento de defesa do dono pode ser interpretado à essa luz, e não à de um possível altruísmo, pois é uma coisa muito comum na Natureza em todos os animais sociais a defesa do grupo contra inimigos externos, particularmente contra outras espécies predadoras e intrusos no ambiente social.

Portanto, precisamos ser muito cuidadosos ao atribuir sentimentos e emoções humanas aos animais. Podemos estar enganados e ficar discutindo e louvando coisas que não são bem aquilo o que aparentam. A ciência aceita que os animais tenham emoções, pois seria um absurdo que nós, que somos relacionados geneticamente a uma ampla árvore evolutiva de animais, sejamos os únicos a tê-los. Mas uma coisa é o comportamento emocional, como o dos cães, e outra é o sentimento dessas mesmas emoções. Nós nunca saberemos se o que eles sentem é igual ou parecido ao que sentimos, pois não temos como perguntar isso a eles. Aliás, não sabemos ao certo nem se uma outra pessoa sente a mesma emoção que sentimos, apesar de nossa capacidade de introspeção (exame de nossa própria psique) e capacidade de comunicação abstrata!

Para quem quiser ler mais sobre o assunto, o autor Jeffrey Masson, um ex-psicanalista americano, escreveu um best-seller, "Quando os Elefantes Choram", e que foi traduzido recentemente pela Geração Editorial (eu participei como consultor especialista na revisão da tradução do livro). Nele, Masson postula de forma bastante forçada que as emoções, tanto expressas quanto sentidas, existem em todo o reino animal, e que isso poderia ser a base de um novo "humanismo" e respeito aos direitos animais. Ele força muito a barra em seus argumentos, tendo sido atacado pelos etologistas por isso, mas não deixa de ser interessante, principalmente pelos coloridos e emocionantes exemplos que cita.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  19/03/1999.

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