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A divisão do saber

Renato Sabbatini

A característica fundamental da sociedade humana é a cooperação. Somos seres interdependentes, é impossível sobrevivermos sem a integração aos outros seres humanos que formam nosso grupo social. Até a nossa própria individualidade, com suas características boas ou más, bem ou mal adaptadas, é plasmada pelas interações sociais, pelo aprendizado induzido e reforçado pelos nossos congêneres. Pouca gente pensa nisso (e se pensassem, teríamos certamente um mundo muito melhor, menos egocêntrico).

Todos os grupos sociais, das abelhas e formigas aos seres humanos, surgiram como resposta à necessidade de dividir o trabalho. Na colméia existem a abelha-rainha, os zangões e as abelhas operárias. Na sociedade humana existe uma diversidade assombrosa de ofícios, profissões, misteres, especialidades e subespecialidades (aliás, quanto mais bem organizada é uma civilização, maior o número dessas especialidades, ou disciplinas do saber). A teia de interdependência é abrangente, profunda, dispersa no tempo e no espaço, em todas as direções. O leitor pode tentar colocar sua imaginação para trabalhar, pensando simplesmente em quantos tipos diferentes de profissionais, em quantos locais geográficos, estão envolvidos num simples ato do cotidiano, como pegar seu carro, por exemplo, dirigir até um MacDonald's e comer um hamburguer e um guaraná com fritas.

Sem a divisão do trabalho e a especialização, a sociedade humana atual simplesmente não existiria. Estaríamos ainda no degrau inicial dos hominídios, onde a única forma de divisão de trabalho existia no núcleo familiar, entre mulheres e homens (esta divisão tem um background genético tão forte, que afeta até hoje as relações humanas). Com a urbanização, o homem passou a viver na "civitas", abandonando a vida nômade e criando o comércio e a indústria, o dinheiro como meio intermediário de trocas de bens, a escrita e a matemática. Explodiu, assim, o número de especializações de trabalho e o próprio conceito de profissão. Teve início o longo processo de fragmentação e expansão do conhecimento, que se acelerou exponencialmente nas eras industriais e da informação.

Uma coisa interessante é a que essa ultra-especialização decorre da explosão do conhecimento (ninguém mais consegue abarcar todo o conhecimento humano ou mesmo de uma sub-área), mas também, simultaneamente, contribui para essa mesma explosão. São mecanismos mutuamente reforçadores.

Qual é o papel da universidade em tudo isso? Obviamente, ela foi, e continua sendo, um dos grandes e fundamentais mecanismos de suporte a esse processo. O desenvolvimento histórico é muito interessante e ilustra bem esse papel. No começo da Idade Média, o aprendizado das especialidades era exclusivamente através dos aprendizes dos artesãos, que formaram ligas especificamente para a defesa e a continuidade das "castas" profissionais fechadas (chave da sobrevivência). Com o interesse de alguns discípulos das classes mais altas pelo aprendizado e debate de temas abstratos, como teologia, filosofia, arte, música, drama, literatura, etc., surgiram as primeiras universidades ocidentais modernas, como Oxford, Paris, Pádua, Bolonha, etc., e que eram essencialmente eclesiásticas (uma palavra que tem a mesma raiz de "igreja" e "escola"). Nelas, os estudantes contratavam os professores que queriam, e não havia nenhum tipo de formação profissionalizante. Os melhores eram os que tinham capacidade de criação original do conhecimento (os intelectuais), assim logo surgiu um incentivo econômico para o surgimento do professor-pesquisador. Com muito tempo para utilizar, e uma curiosidade natural, que levava à descoberta e à invenção, esse novo ser foi o germe do nascimento das ciências naturais e experimentais, da física e da astronomia, da química, da biologia, etc. Os antigos "filósofos naturais" se transformaram em cientistas, sendo Galileu Galilei e Isaac Newton os seus grandes arquétipos, na segunda metade do século XVII. Surgiram então as sociedades e as revistas científicas, as aplicações dessa ciência para o desenvolvimento comercial, industrial e militar, e as universidades estatais, culminando com o modelo napoleônico de universidade, onde as formas extremas de divisão do saber, através das faculdades, cátedras e disciplinas, formaram a base da sociedade moderna. A universidade passou então a formar várias categorias profissionais, como os advogados, os médicos, os engenheiros, etc., mas isso só aconteceu bem depois.

Estão aí as razões para a universidade ser o que é: a pesquisa, o ensino e a extensão do conhecimento à sociedade formam o tripé funcional dessa estrutura, dessa mini-sociedade, que é tão fundamental para todos nós. Seria bom o governo (e as próprias autoridades universitárias) pensarem muito bem antes de querer mudar essa estrutura, e parar de sustentá-la. Seria suicidio social, seria voltar ao nível de um Haití ou de uma Zâmbia.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 28/11/98.

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