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Ciência Perdida no Terceiro Mundo

Renato Sabbatini

O Brasil produz cerca de 0,75 % dos trabalhos científicos publicados no mundo, uma contribuição que não condiz nem com o tamanho de sua população nem com o de sua economia.

Certo ? Não, errado. O Brasil produz muitos mais trabalhos científicos dos que aparecem nessa estatística, que foi elaborada por um país do primeiro mundo, e por uma empresa especializada em venda de informação sobre as publicações, o Institute of Scientific Information (ISI), de Philadelphia.

O problema é que a base de dados usada pelo ISI para tirar essas conclusões é extremamente elitista. Ela é alimentada por um número altamente selecionado de revistas científicas (pouco mais de 2.000 na área médica, por exemplo), e quase que exclusivamente por revistas editadas nos EUA e Europa. Não é de se espantar, portanto, que tenha poucos artigos provenientes de países menos desenvolvidos ! É uma coisa óbvia para qualquer pessoa de bom senso, no entanto, essas estatísticas são repetidas "ad nauseam" por nossas autoridades científicas e de outros países, como uma prova de que somos improdutivos. Chegamos ao absurdo, até, de que agências de financiamento à pesquisa brasileira estão avaliando a produtividade do pesquisador com base apenas nos artigos publicados em revistas do chamado "primeiro time" (ou seja, as que são definidas unilateralmente pelo ISI).

Rxiste uma série de problemas extremamente sérios nessa filosofia. Em primeiro, o local onde um trabalho ser publicado não mede de forma correta ou justa o seu impacto na sociedade (que é para o que existe a ciência, afinal das contas). Existem enormes áreas aplicativas, como agricultura, medicina, informática, etc., nas quais o interesse regional pelo resultado das pesquisas é o que determina a sua utilidade. Para tomar um exemplo: um pesquisador brasileiro que trabalha com cana de açucar vai ter grandes dificuldades de achar uma revista internacional (existente principalmente em países do hemisfério norte, onde o cultivo da cana de açucar não existe) que aceite seus trabalhos, que, em alguns casos, poderão ser extremamente importantes ou até revolucionários para o desenvolvimento da ciência no Brasil e nos países onde essa cultura tem importância econômica.

A argumentação a favor do maior valor dado às publicações nas revistas mais exigentes é de que elas aceitam somente trabalhos de alta qualidade, e que são lidas por todo mundo e assinadas por todas as bibliotecas. Na era da Internet, essa afirmação atinge níveis de ridículo. Valia para o tempo em que as revistas eram impressas, com assinaturas pagas, de alto preço, e circulação restrita. Quanto ao grau de exigência, infelizmente ela é muito relativa. Diversos estudos já mostraram que se o autor tem um sobrenome inglês ou alemão, e pertence a uma instituição do primeiro mundo, tem duas vezes mais chances de ter seu trabalho aceito nessas revistas do que um autor da Índia, África ou Brasil, mesmo quando os "papers" têm igual nível de qualidade. Eu mesmo já tive a oportunidade de constatar erros gritantes em trabalhos de autores americanos, aceitos em revistas de primeiro time.

Tudo isso tem levado alguns estudiosos do fenômeno a chamá-lo de "ciência perdida". O termo se refere às pesquisas que são produzidas no terceiro mundo, e que por não ser aceitas pelas revistas de maior prestígio (algumas chegam a rejeitar 60 % dos trabalhos recebidos), acabam ficando perdidas, longes dos olhos do mundo. No entanto, elas foram realizadas, muitas são de ótima qualidade. Seus autores ficam desqualificados e perdem competitividade por verbas e prestígio acadêmico quando isso acontece, com evidente prejuízo para eles, suas universidades e seus países.

Sob o impacto das inovações tecnológicas, é possivel que essa situação de esnobismo e exclusividade dos fechados "clubes" das revistas científicas, começe a mudar. Um pesquisador britânico, Steven Harnad, prenunciou uma revolução, que seria a de um modelo mais aberto de publicação científica. Ela é chamada de "open peer review", ou revisão crítica aberta. O artigo é colocado na Internet, em um site especial, e fica aberto para a leitura e críticas por seus pares (pessoas que trabalham na mesma área). Essas pessoas se identificam, ao contrário do esquema de anonimato que predomina hoje. Se o "paper" for muito criticado e não encontrar um consenso, ele é retirado. No entanto, para muitos autores, só o fato de ele ter sido disponibilizado e se tornado conhecido, já compensa.

Temas como esses serão discutidos no VII Encontro da Associação Brasileira dos Editores Científicos, que será realizado em Caxambu, nos dias 7 a 10 de outubro. É a elite dos editores de revistas científicas no Brasil, e o impacto da Internet nas publicações será um dos pontos mais debatidos.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 9/10/98.

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