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A bomba indiana

Renato Sabbatini

A Índia provocou protestos em todo mundo, ao detonar recentemente cinco bombas nucleares em testes subterrâneos. Os testes foram realizados porque a Índia não é signatária do tratado das Nações Unidas que os proibe. Mesmo assim, os EUA, o Japão e a Rússia condenaram indignadamente os testes, o Paquistão e a China, vizinhos e inimigos históricos da Índia, ficaram ofendidos, e pior, o Paquistão (que se separou da Índia em 1947, devido a guerras religiosas) declarou que pretende retomar seu programa de construção e teste de armas nucleares, numa região já bastante instável pelos múltiplos conflitos entre os países. Há exatamente 24 anos atrás, em 18 de maio de 1974 a Índia passou a integrar o restrito clube de países nucleares (EUA, França, Inglaterra, Rússia e China), ao detonar uma bomba de fissão (semelhante à de Hiroshima), com potência de 15 quilotons. Não passou nem uma semana, o Paquistão também detonou cinco artefatos nucleares.

Como é possível um país considerado pobre e atrasado por todo mundo (menos de 40 % dos indianos são alfabetizados, a longevidade média é de apenas 59 anos e o rendimento per capita anual é menos da metade do brasileiro, que já é ruim), ter armas de tal sofisticação, que muitos países mais adiantados não foram capazes de desenvolver ? O fato é que a ciência e a tecnologia da Índia são, em muitas áreas, bem mais avançadas que no Brasil. Por exemplo, nosso país ainda não conseguiu colocar um satélite em órbita usando lançadores próprios. A Índia desenvolveu uma linha de foguetes multiestágios razoavelmente sofisticados, alguns deles com quase 300 toneladas de peso, tem uma base lançadora em Sriharikota, no estado de Andhra Pradesh e já colocou um satélite de sensoreamento remoto em órbita polar.

O desenvolvimento de um sistema eficiente de educação científica e tecnológica teve início na Índia há muito mais tempo que no Brasil, pois eles tiveram a "sorte" de terem sido dominados por uma potência colonial, o Reino Unido, que se preocupava em educar os súditos nativos, ao contrário de Portugal. Como existem 12 línguas oficiais e centenas de dialetos e idiomas menores na Índia, a única linguagem comum possível foi o inglês, introduzido pelos conquistadores. Desde 1817 existem colégios que ensinam a ciência ocidental, em língua inglesa (o primeiro foi em Calcutá). A liberdade da imprensa foi concedida em 1837 e as primeiras universidades (Calcutá, Madras e Bombaim) foram criadas em 1857. No começo do século, em conseqüência das determinações do vice-rei inglês, Lord Curzon, o sistema educacional indiano foi grandemente expandido e aperfeiçoado, e posteriormente passado para a administração indiana, no ano da independência (1947). O modelo seguido foi de ótima qualidade: os colégios privados ("public schools", como são curiosamente chamados), e as universidades inglêsas. Até hoje, a maioria das escolas técnicas e superiores da Índia ainda ministra os cursos em inglês, o que dá vantagens consideráveis para seus egressos.

A Índia não somente tem mais universidades que o Brasil (mais de 400), como também publica mais artigos científicos e manda muito mais estudantes para os países desenvolvidos. Em centros de pesquisa de altissimo nível, como o MIT (Massachussetts Institute of Technology, nos EUA), mais da metade dos estudantes de pós-graduação provêm da Índia. Muitos tentam ficar e trabalhar nos EUA, é lógico, mas a grande maioria é obrigada a voltar, e contribui muito para o desenvolvimento científico de boa qualidade no país. Em contraste, o Brasil é o país que menos estudantes envia para o exterior (menos de 5.000, o que é cerca de 10 vezes menos do que a Índia), e mesmo assim o número de bolsas disponíveis é cada vez menor.

Mais recentemente, a Índia se transformou em grande potência desenvolvedora de software para computadores, pois seus engenheiros e programadores são contratados pelas grandes empresas ocidentais, como a Microsoft, a um custo mais baixo, e com uma qualidade considerada excelente. As contribuições da matemática e da física indiana também são muito conhecidas, inclusive historicamente, com alguns matemáticos de estatura mundial.

No entanto, como no Brasil, a Índia é um país de muitos contrastes, e existem setores de ciência e tecnologia inexplicavelmente atrasados, que convivem com outros de grande desenvolvimento. Por exemplo, a Índia provavelmente tem o pior sistema de telecomunicações terrrestres de todos os países em via de desenvolvimento. Três entre cada quatro núcleos habitacionais rurais não tem nenhum telefone, e apenas 5 % deles têm serviços de interurbano.

O grau inacreditável de pobreza na Índia é bem conhecido. Em algumas cidades, como Calcutá, existem centenas de milhares de sem-tetos vivendo nas ruas, nas condições as mais esquálidas que se pode imaginar. O país é uma confusão étnica, com muitos pontos de conflito entre as religiões, as etnias, e, se não bastasse, o sistema de castas. Por isso, é revoltante que um país tão pobre invista bilhões de dólares no desenvolvimento e teste de artefatos nucleares. A Índia sempre tem argumentado que é "para fins pacíficos". Essa é uma posição notoriamente hipócrita e uma alegação inteiramente falsa, usada sempre por todas os países que iniciaram programas bélicos nucleares. Não existem bombas nucleares para fins pacíficos, ponto final. Nunca se conseguiu imaginar qualquer uso de uma bomba atômica para outra coisa que não seja matar gente, muita gente. Logo no começo da era nuclear, se imaginava ingenuamente que ela poderia ser usada para cavar canais, por exemplo. Só que logo chegaram à conclusão que o canal ficaria radiativo por milhares de anos, impedindo o seu uso !

O que a Índia está fazendo é uma vergonha para a humanidade e uma ofensa para a sua paupérrima população. Se o Brasil quisesse (e muitos militares brasileiros queriam), nós teríamos a capacidade de desenvolver armas nucleares, também. Felizmente não seguimos esse odioso e perigoso caminho !


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 29/5/98.

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