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Mitos modernos

Renato Sabbatini

É impressionante como alguns mitos dos povos antigos se aplicam, até hoje, a vários aspectos das atividades humanas. Os antigos gregos foram mestres imbatíveis na criação de muitos mitos culturais que influenciaram todas as culturas ocidentais.

Por exemplo, na mitologia grega os três heróis culturais foram Prometeu, seu irmão Epimeteu, e Pandora, sua esposa. Epimeteu recebeu a tarefa de criar a humanidade e dar aos animais e aos homens os recursos necessários para sua sobrevivência. Assim, atribuiu aos animais dons de coragem, forca, velocidade, pelos, garras, asas, etc. Quando chegou a hora de criar o ser humano (que, curiosamente, em quase todas as mitologias é  sempre deixado para o final...), ele tinha desperdiçado todas as qualidades de que dispunha para os animais, nada sobrando para o Homem. Pediu ajuda a seu irmão Prometeu, que então roubou o fogo do sol por meio de uma tocha, e o presenteou ao Homem recém-criado. Era o dom da tecnologia, o mais valioso de todos, e sem a qual o Homem, desprovido de recursos naturais de agressão e defesa contra os elementos e os inimigos, não poderia sobreviver. Zeus ficou irritado com essa prodigalidade, e acorrentou Prometeu a uma rocha no Cáucaso, onde era eternamente atacado por um abutre, que comia seu fígado.

Pandora, por outro lado, foi a primeira mulher na Terra, criada por Hefesto a pedido de Zeus, para compensar o roubo do fogo por Prometeu. Pandora era tremendamente bela e dotada de todos os atributos de bondade e inteligência. Os deuses tinham dado a ela uma caixa, avisando-a para nunca abri-la, sob perigo mortal. Com a típica curiosidade irrefreável das mulheres (pelo menos para os gregos!), Pandora abriu a tal caixa e liberou as inúmeras pragas e infelicidades do corpo e da mente que até hoje assolam a humanidade. Aterrorizada, ela tentou fechar a caixa, sobrando apenas a Esperança, para minorar nossos sofrimentos.

Qual a importância dos mitos? Afinal, eles se contrapõem, e até certo ponto, antagonizam, a razão e a historia, como maneiras "cientificas" de entender a realidade e interpretar nosso passado. Entretanto, eles são alegorias extremamente interessantes. Segundo o famoso e influente sociólogo francês Emil Durkheim, os mitos aparecem como uma resposta humana a existência social, expressando de varias formas a maneira como a sociedade representa a humanidade e o mundo. Assim, os mitos e os rituais a eles associados sustentam e renovam o sistema de crenças e de moral de um povo, impedindo que eles sejam esquecidos através dos
tempos. Por isso, são importantes até em tempos modernos.

Vejam, por exemplo, a atualidade do mito de Sisifo, que serve muito bem para fazer uma alegoria sobre o crescimento exponencial do conhecimento cientifico, e de como é difícil para nos, humanos, simultaneamente autores e vitimas desse fenômeno, enfrentá-lo atualmente. Sisifo, na mitologia grega, era rei de Corinto e provocou a ira de Zeus ao "dedurar" o seu rapto da bela jovem Egina. Zeus condenou Sisifo ao circulo mais profundo do Inferno, chamado Tártaro, no qual ficou eternamente obrigado a empurrar, até o topo de uma colina, um rochedo que sempre rolava para baixo novamente.

É mais ou menos isso que esta acontecendo hoje com os estudantes e os profissionais de todas as áreas do saber. Ao saírem da Faculdade, uma nova montanha de informações os espera acumulada enquanto esperavam terminar sua formação básica. A cada dia, novas formas de acumular e transmitir informação, como os computadores, TV, telefone celular, publicações eletrônicas, videotexto, redes, correio eletrônico, etc., geram novo "rochedo", que temos que procurar vencer novamente, apenas para descobrir que outro tanto foi gerado enquanto dormíamos!

Evidentemente, não sabemos lidar com isso. É um fenômeno novo, que não existia nas sociedades tranqüilas e imutáveis do ultimo milhão de anos, quando nosso cérebro foi forjado pela evolução. Se não inventarmos formas novas de enfrentar o dilúvio de informação e o trauma das mudanças será difícil sobreviver. Precisamos chamar Prometeu novamente...


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 14/4/94 .

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