Cobaias canibais
Renato Sabbatini
Jamais
a Ciência brasileira chegou a níveis tão baixos. Nas últimas semanas, a
imprensa tem comentado a crise sem precedentes pela qual estão passando
os pesquisadores e os institutos e faculdades onde eles, abnegadamente,
tentam trabalhar. Salários ridiculamente pequenos, bolsas atrasadas ou
canceladas, falta de dinheiro para equipamentos e materiais de consumo,
tudo parece ter chegado a níveis insuportáveis, dignos do Quarto ou
Quinto Mundos. E olhem que nossos cientistas estão bastante acostumados
às crises.
O evento que tornou mais evidente essa decadência
espantosa foi a morte de milhares de animais de laboratório, no
lnstituto Vital Brazil, em Niterói. Para horror das almas mais
sensíveis, esclareceu-se que a maior parte deles morreu de fome ou
vitima de canibalismo por parte de seus companheiros de gaiola,
enlouquecidos pela desumana privação.
A notícia nos provoca a
fazer alguns comentários. O primeiro deles é de natureza cientifica.
Evidentemente, a ocorrência de canibalismo em massa entre cobaias
denota, antes de tudo, um monstruoso descaso e incompetência por parte
dos encarregados do biotério do Instituto Vital Brazil. Qualquer
biólogo ou veterinário com conhecimentos medianos sabe que mamíferos de
pequeno porte como ratos e camundongos, não suportam ficar mais do que
24 horas sem alimento. Seu metabolismo é muito acelerado, em função do
pequeno tamanho do corpo, e eles não têm reservas orgânicas.
O
recurso ao canibalismo pode parecer horroroso, visto pela nossa moral,
mas é uma coisa extremamente comum entre roedores sociais, sendo
utilizado frequentemente no ambiente natural dessas espécies, para
controlar o tamanho das populações. Um pesquisador norte americano
chamado Finger estudou, uns 40 anos atrás, o comportamento de ratazanas
submetidas a condições de superpopulação (muitos animais para pouco
alimento ou pouco espaço). Ele observou uma ruptura dramática na
estrutura social dos ratos; com infanticídios, aumento da
agressividade, canibalismo, decréscimo da taxa de fertilidade, mortes
por estresse, etc., que hoje se sabe serem mecanismos automáticos de
sobrevivência da espécie.
Em função desse conhecimento, os
bioteristas do Instituto Vital Brazil deveriam ter sacrificado
imediatamente os animais, usando métodos indolores, assim que se
configurasse uma situação de privação prolongada de alimento. Teriam
evitado muito sofrimento desnecessário, alem dos transtornos causados
pelos animais mortos e em decomposição. De qualquer forma, ao que eu
saiba, nunca tinha se registrado antes tal fato no Brasil, cobaias
mortas por falta de dinheiro para alimentação. Com a permissão de
Saddam Hussein, esta parece ser a mãe de todas as crises.
Os
pesquisadores que trabalham há mais tempo têm a impressão de que a
história da Ciência nacional se resume a uma longa e ininterrupta
crise. A cada ano, imagina-se ter chegado ao fundo do poço, só para
descobrir que os Iimites considerados impossíveis foram rompidos. Os
cientistas dos tempos de Collor tem saudade dos tempos de Sarney. que
por sua vez lamentam não estarem mais na época de Figueiredo, os quais
remetiam aos bons tempos do Geisel, e assim por diante. O próprio nome
do instituto onde ocorreu a mortandade lembra épocas bem melhores para
a Ciência tupiniquim: da mesma forma que Oswaldo Cruz, Rocha Lima,
Carlos Chagas e Mauricio Rocha e Silva, o Dr. Vital Brazil foi um
pesquisador aclamado internacionalmente, no começo do século, por suas
descobertas relativas aos soros antiofídicos.
Mas afinal, que
espécie de loucura está acontecendo em nosso país? Como se explica o
fato de que um governo, uma elite e uma sociedade tenham sido capazes
de permitir a situação ter chegado a este ponto? Qualquer criança de
ginásio sabe que a dignidade, a soberania e o progresso de um povo
dependem diretamente de sua fé no poder transformador da Educação e da
Ciência. O Japão, os Estados Unidos e a Europa não são os mais ricos e
os mais desenvolvidos por acaso. Eles investem muito, e ha muito tempo,
nessas duas áreas.
Que justificativa daremos para nossos
filhos e netos sobre esse suicídio coletivo que representa a
desorganização e a destruição de todo um edifício tão laboriosamente
construído pelas gerações que nos precederam? É um comportamento
manifestamente patológico de uma nação que não toma o mínimo cuidado
para se defender do futuro.
Na minha opinião, todos nos somos
culpados, ou coniventes. Não adianta querer jogar a culpa apenas no
ministro da Economia, ou nas políticas ruinosas do presidente, ou na
omissão das autoridades cientificas que fazem parte do governo (que,
alias, receberam recentemente o glorioso reforço do digníssimo profeta
do caos, o professor Hélio Jaguaribe, que, prenunciou, e logo estará
defendendo as mesmas políticas ruinosas que antes atacava, e se
queimando definitivamente perante a nação. Já começou bem, justificando
o atraso de quase um mês no pagamento das míseras bolsas de nossos
estudantes de pós-graduação.
É forçoso reconhecer que as
prioridades da sociedade brasileira, de uma forma global, estão em
outras paragens, e não na Ciência e na Educação. Onde estão as
manifestações indignadas perante a morte das cobaias? Ou a paralisação
de renomados institutos de pesquisa? Ou a fuga dos nossos cérebros para
o Exterior? Façam valer as suas vozes, senhores leitores, protestem.
Publicado
em: Jornal
Correio
Popular,
Campinas, 3/11/92.
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