A vanguarda do atraso
Renato Sabbatini
Não
sei quem criou essa expressão a vanguarda do atraso — mas ela é muito
boa para descrever a situação do Brasil com relação as outras nações,
em quase todas as esferas. Ela caracteriza o estado intermediário em
que estamos, entre as nações subdesenvolvidas e as desenvolvidas. A ONU
é um dos organismos internacionais que adotam uma classificação dos
países de acordo com o grau de desenvolvimento. A Zâmbia, por exemplo,
está indubitavelmente entre os países “em desenvolvimento" (ou seja, é
subdesenvolvida mesmo...). Já o Canadá é um pais claramente
desenvolvido. A Arábia Saudita e outros países que eram
subdesenvolvidos, mas que ficaram ricos com o petróleo, foram colocados
em uma categoria a parte. E o Brasil? Foi classificado como “em
desenvolvimento avançado”. Essa classificação elaborada pela ONU pode
parecer um exercício fútil, mas não é: ela condiciona, por exemplo, que
tipos de ajudas financeiras um país esta habilitado a receber.
Inclusive, o Brasil tem perdido o direito a alguns financiamentos de
infraestrutura social devido a classificação de “avançado”.
Nossa dúbia situação é bem caracterizada pelo contraste entre
diversos indicadores sociais e econômicos. Entre os cerca de 180 países
que fazem parte da ONU, somos a nona economia mundial, em termos de
produto nacional bruto. Entretanto, em qualidade de vida da população
estamos em 67º. lugar! Quase a totalidade de nossos índices sociais,
como saúde, educação, número de telefones, ligações de esgoto, água
tratada, rendimentos per capita, etc., é típica dos países mais pobres
do Terceiro Mundo. Em alguns casos, chegamos a perder de vários países
africanos e latino-americanos muito mais miseráveis do que a gente.
Outra
característica de países “em desenvolvimento avançado" também ocorre no
Brasil: é a existência de marcados contrastes regionais e de classe. O
economista, diplomata e político Roberto Campos (aquele que votou em
primeiro lugar a favor da licença para processar o presidente Collor)
criou um termo lapidar para essa situação: o nome do Brasil deveria ser
Belíndia, ou seja, temos aqui uma Bélgica (em São Paulo) e uma Índia
(no Nordeste), em termos sócio-econômicos.
Em ciência e
tecnologia acontece exatamente a mesma coisa. Temos ilhas de
excelência, como a USP e a Unicamp, universidades que têm orçamentos
anuais superiores aos de vários Estados brasileiros. Contam com
supercomputadores avançados, desenvolvem pesquisas de nível
internacional e publicam artigos científicos nas melhores revistas do
mundo. Entretanto, nessas mesmas universidades, temos estudantes de
pós-graduação sobrevivendo com bolsas de US$ 600 (dois salários
mínimos!), coisa que provavelmente nem a Universidade da Zâmbia tem.
Mesmo
tendo mais de 70 universidades, cerca de 1,5 milhões de estudantes
universitários, e mais de 52 mil pesquisadores, o Brasil apresenta
índices per capita, em Ciência e Tecnologia, dignos do Haiti. Por
exemplo, apesar desse número impressionante de pesquisadores, temos
apenas 400 cientistas por milhão de habitantes, enquanto o Japão tem
5.029. Entre os nossos pesquisadores apenas 34% têm mestrado ou
doutorado: é um nível assustadoramente baixo de competência (no Japão
são 8o%). Enquanto os EUA e o Canadá têm mais de 50 estudantes
universitários por cada mil habitantes, o Brasil tem apenas dez (outro
pais na categoria de "em desenvolvimento avançado", a Coréia do Sul,
tem quase quatro vezes mais que o Brasil). Outro dado indicativo de
nosso atraso: entre 1987 e 1992, o CNPq deu 1.155 bolsas para o
Exterior, por ano. A Coréia do Sul, no mesmo período, deu mais de 40
mil por ano! Portanto, dentro do nosso pavoroso atraso geral, temos as
ilhas de vanguarda.
Todos os especialistas dizem que a
situação é transitória, típica de países com grau de desenvolvimento
intermediário, etc., e tal. Infelizmente, precisamos fazer alguma coisa
para não ficar apenas por aqui. O fato de o presidente Itamar Franco
ter deixado por ultimo a escolha do novo ministro de Ciência e
Tecnologia é um mau começo. Falta de prestigio da área, ou mera
coincidência? Assim, comparados com outras nações, até que estamos bem:
somos a vanguarda do atraso!
A grave crise que tem afetado o
Brasil na ultima década aponta, infelizmente, para um caminho de
desagregação e sucateamento progressivo de muitas das conquistas tão
duramente conquistadas ao longo de nosso desenvolvimento. Todos nós
esperamos com ansiedade a retomada do crescimento econômico e a
superação da crise, com a correção das injustiças sociais e das
imperfeições políticas. Curiosamente, entretanto, parece que todo mundo
espera que isso aconteça como um passe de mágica (bem típico dos
brasileiros). Não se nota, nem mesmo entre os setores de liderança
intelectual da Nação, a proposta de um verdadeiro "projeto nacional"
bem-fundamentado.
Segundo um interessante relatório elaborado
em 1990 pelo CNPq, denominado "A Modernidade no Brasil: Cenários de
Ciência e Tecnologia 1990-2010”, as novas palavras de ordem, que são
produtividade, eficiência, competitividade, abertura de mercado,
desregularão, privatização, só terão sentido para os brasileiros se
baseadas num vigoroso desenvolvimento cientifico e tecnológico. O
estudo propõe uma série de metas estratégicas para que o Brasil chegue
lá e analisa os cenários possíveis. Uma das metas, por exemplo, propõe
triplicar a atual base de 400 pesquisadores por milhão de habitantes
até o ano 2000 e decuplicá-la até o ano 2010 (o imbatível Japão já
dispõe de 5 mil!). Da mesma forma, o estudo considera essencial
aumentar o investimento publico em ciência e tecnologia, dos atuais
míseros 0,6% do PIB, para 3%, no final do século XX, e 4% no ano 2010.
O
setor privado também deverá ter uma participação importante nesses
investimentos, se quisermos tirar o pé da lama. Nos países
desenvolvidos, ele é responsável por quase 50% do total de
investimentos no Brasil, hoje, representam apenas 8%. A meta é atingir
15% no ano 2000 e 30% dez anos depois. Evidentemente, muita gente
considerou essas metas totalmente utópicas e inatingíveis. Elas
representam, de fato, uma aceleração enorme do nosso atual progresso na
área de C & T (que, ao contrário, se encontra em franco retrocesso
há pelo menos quatro anos).
O estudo do CNPq não entra nesse
mérito: ele levanta três cenários possíveis, os quais chamou de
Continuidade da Crise, Liberal Modernizante e Social Reformista. Nos
dois últimos cenários, que são considerados perfeitamente possíveis
dentro de nossa capacidade de investimento, ocorreriam trajetórias
bastante próximas das metas ideais de desenvolvimento. Como outros
países mostraram, esse crescimento acelerado da ciência e da tecnologia
é possível em 20 anos, desde que haja uma vontade coletiva da sociedade
e uma determinação política do governo. A quantidade de dinheiro a ser
investida é bem grande. Por exemplo: para atingir a meta de 2 mil
pesquisadores por milhão de habitantes e 2% do PIB em investimentos em
C & T, será necessário gastar US$ 24 bilhões por ano, o que
representa quase dez vezes o que se gasta hoje.
Será realmente
um grande salto, uma grande virada que teremos de dar até o final do
século. Ministros competentes não bastam. O professor Israel Vargas,
recém-nomeado ministro da Ciência e Tecnologia é um dos mais preparados
de todos que o Brasil já teve nessa área. Ele não só é cientista
extremamente respeitado (é presidente da prestigiosa e exclusivíssima
Academia Brasileira de Ciências), como também um profissional com larga
experiência em política de desenvolvimento de C & T. Tem, também,
ótimos contatos na comunidade internacional por ter sido por muitos
anos um dos diretores da UNESCO, o órgão da ONU que apóia o setor.
Entretanto, se não tiver o apoio do presidente e do "pessoal do
dinheiro", não vai adiantar nada, como sempre.
Publicado
em: Jornal
Correio
Popular,
Campinas, 22 e 29/10/1992.
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