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Ideologia feminina

Renato Sabbatini

Já repararam quanta coisa na natureza é do gênero feminino? Em quase todas as mitologias, aliás, a Terra e a Natureza são sempre representadas por figuras femininas. Um dos motivos para isso é que a reprodução da vida sempre foi associada a uma característica muito visível da fêmea: a fertilidade. Os povos antigos não conheciam o mecanismo da reprodução humana, portanto associavam a fertilidade exclusivamente à figura da mulher. Muitas religiões politeístas colocam as deusas em lugar de destaque. Na religião católica como Deus é sentido como um ser masculino, essa adoração da figura da mãe e mulher como fonte de tudo se concretiza na Nossa Senhora.

Existem paralelos interessantes entre feminismo e ecologia. Uma socióloga da ciência e feminista norte-americana, Carolyn Merchant, foi a primeira a apontar esses paralelos, há uns dez anos. Em seu livro “A Morte da Natureza”, ela chamou a atenção para a identificação da ciência com o pensamento patriarcal e machista, como visão do mundo. Até o século 17, a ciência se preocupava mais com a sabedoria, ou seja, com a descoberta de como o mundo é feito e com o universo do intelecto humano. A ciência não era considerada como algo necessariamente utilitário, que devesse trazer progresso material a Humanidade. Tanto é assim que os cientistas eram chamados de filósofos naturais.

A partir do acelerado desenvolvimento da física, entretanto, começou a desenvolver-se uma concepção bastante mecanicista e reducionista da Natureza. Merchant identifica essa tendência em direção a uma ciência manipulativa como um traço exclusivamente masculino, refletido pela obsessão com o controle e dominação em uma cultura patriarcal. O filósofo inglês Francis Bacon foi o primeiro a declarar que "o conhecimento é poder", e que a abordagem empírica da ciência a favor do progresso tecnológico humano é que justificava sua existência. Merchant mostrou como de forma até chocante, Bacon comparava a conquista da natureza pelo homem a um estupro violento, usando meios mecânicos. Ele usou termos que caracterizavam o cientista como uma pessoa que devia "escravizar a natureza", "arrancar os seus segredos mediante tortura”, e assim por diante.

Segundo Fritjof Capra, outro cientista que se ocupou desse assunto em seu livro “Sabedoria Incomum”, essa visão mecanicista e dominadora da Natureza, em contraposição a uma tentativa de conquistá-la por métodos mais suaves e harmônicos, passou a permear toda a ciência até os nossos dias, tendo estado presente, em menor grau, em Newton, Descartes, Hobbes e outros fundadores da ciência moderna.

Merchant e Capra explicam que, desde então, a exploração da natureza e das mulheres sempre andaram lado a Iado. Existiria, assim, um parentesco entre a ecologia (a defesa da natureza contra a violência da tecnologia) e a feminilidade (a revolta contra o machismo dominador). Não deixa de ser um argumento interessante, embora um pouco forçado em certos pontos (a mulher não era explorada antes do século 17? Não existe ciência desinteressada?).

Existem muitos outros paralelos entre os novos paradigmas da sociedade, descobertos a partir das revoltas dos jovens em 1968, o surgimento do feminismo e dos movimentos de libertação pessoal, como o fenômeno hippie, hoje praticamente extinto. Esse ponto de mutação se chama holismo, palavra que vem do grego hólon, ou inteiro. Nessa nova ideologia do conhecimento, procura-se caracterizar a natureza como um fenômeno multiplamente integrado e indivisível, no qual o todo é maior que a soma das partes. O holismo tem como uma das suas bases a própria mecânica quântica, como já expliquei aqui, em outros artigos.

Diversas correntes em medicina, psicologia, psiquiatria, sociologia, economia, e até biologia, tem se alimentado na fonte do holismo. O holismo esta até levando a um novo tipo de crença semi-religiosa, que é o da existência de uma "mente cósmica", sobre a qual escreverei um dia desses. Um dos paralelos interessantes ocorre entre o valor do conhecimento intuitivo, não científico, e a descoberta que o cérebro humano apresenta importantes diferenças anatômicas e fisiológicas entre o homem e a mulher. Inúmeras pesquisas demonstraram que o cérebro feminino usa mais o seu lado não dominante (o lado direito em pessoas destras) do que o masculino, que é extremamente lateralizado. O desenvolvimento de uma percepção mais holística e intuitiva passaria, portanto, pelo treinamento do nosso lado não dominante do cérebro. Já existem até cursos para isso! Quem sabe que, com isso, ciência e humanismo finalmente se encontrarão.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 16/7/92.

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