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Ciência pura ou aplicada?

Renato Sabbatini

Recentemente, algumas personalidades de inegável importância nos meios intelectuais e políticos da Nação se posicionaram contra o financiamento da pesquisa cientifica pura. Melhor dizendo, acham que o pouco dinheiro que o Brasil possui para gastar em Ciência deveria ser investido prioritariamente no setor da pesquisa aplicada. A justificativa comumente apresentada é que um país do Terceiro Mundo deveria concentrar seus investimentos em áreas de pesquisa e tecnologias que sejam capazes de proporcionar retomo imediato para o progresso social.

Essa discussão não é nova: desde a década de 50, quando a Ciência brasileira começou a crescer significativamente, ela tem voltado à cena; sempre sendo fácil, entretanto, demonstrar a cegueira e o perigo deste ponto de vista. Acho surpreendente que as pessoas que o defendem não conheçam um mínimo de História. A meu ver, essa proposta é simplesmente suicida, e servirá apenas para reforçar o espantoso retrocesso por que vem passando o Brasil ultimamente na área da criação cientifica e tecnológica.

A Ciência moderna é muito recente, historicamente falando. Ela surgiu há apenas 500 anos, com Copérnico e Galileu, e se baseia em uma poderosa ferramenta intelectual: o método científico. A esmagadora maioria das descobertas cientificas não tem qualquer aplicação imediata. A Ciência pura justifica-se por si mesmo, mas o que, aparentemente, é apenas uma diversão dispendiosa de uma pequena parte da humanidade, financiada pelo trabalho do restante, tem uma importância fundamental para o progresso de todos. Algumas das descobertas científicas eventualmente acham seu caminho até a aplicação na tecnologia. Só então todo o seu potencial transformador social se concretiza.

Um exemplo interessante de como esta convicção é antiga ocorreu há muitos séculos, quando Alessandro Volta, um dos maiores cientistas de todos os tempos, foi visitado pelo irmão de Napoleão, o Rei de Nápoles. Tentando demonstrar uma de suas descobertas, na qual utilizava a eletricidade gerada por uma pilha para provocar contrações musculares em um sapo, Volta foi surpreendido com uma indagação impaciente do rei: "Mas, afinal, professor, qual é a utilidade disso?" Consta que ele, entre irônico e ofendido, retrucou: "Então me responda, majestade, para que serve um bebê recém-nascido?"

O domínio do método cientifico e a formação de bons pesquisadores para servir ao progresso de um pais só podem ocorrer quando existe uma atividade razoável de pesquisa pura nas universidades e institutos. Os países mais adiantados, entre os quais aqueles que dominam economicamente através da sua tecnologia, reconheceram este principio muito cedo em suas historias, e investem pesadamente em pesquisa pura. Um exemplo insofismável é o financiamento da pesquisa pura e desinteressada feito por grandes corporações norte-americanas, japonesas e européias. A IBM, por exemplo, cujo único negocio é construir e vender computadores, montou dezenas de centros de pesquisa espalhados por todo o mundo, que lhe custam mais de US$ 4 bilhões por ano. Alguns desses centros, como o dc Zurique, contam com diversos prêmios Nobel em seus quadros, que se dedicam a pesquisar áreas da Física que não têm a menor chance de encontrar aplicação ainda neste século. A supercondutividade, fenômeno puramente de laboratório, e que vinha sendo pesquisado pela IBM desde a década de 40, agora começou a render frutos espetaculares, com um potencial tecnológico imenso, graças a descoberta de novos materiais.

Não é preciso procurar muito para notar que as áreas científicas aplicadas em que o Brasil mais se desenvolveu nos últimos anos são justamente aquelas em que a pesquisa pura é mais forte. Na Medicina, por exemplo, todos são unânimes em elogiar e admirar a qualidade do Instituto do Coração da USP (por isso mesmo, aliás, procurado por dez entre dez de nossos políticos quando passam por algum problema médico). Esquecem-se, porém, que este instituto está localizado no contexto de um fortíssimo e antigo centro de pesquisa biológica e médica pura, a Faculdade de Medicina da USP. Seria possível imaginar, por exemplo, um Incor na Universidade Federal do Piauí? Seria, mas apenas se investisse também em pesquisa pura...

Ciência, portanto, é investimento a longo prazo. Uma prova é que, no final do século passado, estimava-se que apenas 12% do produto industrial eram devidos a inovações derivadas da pesquisa cientifica. Atualmente, esse porcentual se eleva a mais de 50%, nas sociedades mais desenvolvidas, e tende a subir cada vez mais.

Que cenário teríamos, supondo que fosse desmontada completamente a pesquisa cientifica pura no Brasil? lsso significaria que os melhores pesquisadores de Fisiologia, Bioquímica, Anatomia, etc. dos institutos e faculdades de bom nível migrariam imediatamente para outros países, ou mudariam de profissão. Com isso, cairia muito a qualidade dos futuros pequisadores, e seria impossível atrair jovens com talento para a pesquisa aplicada e dar-lhes treinamento e ambiente profissional adequados. Em pouco tempo, estaríamos comprando todos os equipamentos e know-how no Exterior, caindo na mais abjeta dependência, como acontece com países como Gana e Afeganistão.

É para esse time que queremos entrar?

Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  14/05/1992.

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