E assim veio o cão
Renato Sabbatini
“So kam der Mensch auf den Hund”:
assim o Homem encontrou o cão. Este é o titulo original, em alemão, de
um livro interessantíssimo do célebre etólogo e Prêmio Nobel, Konrad
Lorenz, sobre a origem evolutiva e social dessa velha amizade. Etologia
é o ramo da Biologia que estuda o comportamento dos animais sob o
prisma da Teoria da Evolução, e Lorenz é (era, porque já morreu) mais
capacitado do que a maioria para escrever sobre o assunto. Ele tinha
uma chácara em sua terra natal, na Áustria, onde criava e estudava um
grande número de animais, desde exóticos peixes tropicais até abutres e
patos selvagens. Afeiçoava-se a todos os animais (e eles
correspondiam), e escreveu muitos artigos absolutamente deliciosos
sobre suas experiências. Recomendo também o livro “O Anel de Salomão”,
que conta muitas dessas estórias.
Pois bem, Lorenz tem algumas teorias provocadoras sobre a origem da espécie Canis familiaris,
que é o nome científico do cão doméstico. Ao contrário da maioria dos
especialistas, que consideram que o cão deriva de uma espécie
domesticada de lobo, ele acha que as cerca de 200 linhagens de cães
existentes atualmente derivam também do chacal, da raposa e dos cães
selvagens. Segundo ele, os cães grandalhões e de orelhas pontudas, como
o cão pastor alemão, o dogue, o fila, o esquimó, e muitos outros,
derivam do lobo; ao passo que os cães menores (o terrier, o spaniel, o
pequinês, etc.) derivam das outras espécies de canídeos (todas elas
pertencentes ao gênero Canis).
As diferenças de comportamento bastante claras que existem entre estas
duas linhas de derivação seriam uma prova, segundo Lorenz, dessa origem
diversa.
No começo do livro, Lorenz conta uma estorinha
hipotética, mas muito divertida, sobre como devem ter ocorrido os
primeiros contatos entre a espécie humana e os canídeos selvagens,
cerca de 14 mil anos atrás. Os lobos e chacais provavelmente cercavam
os acampamentos de caçadores humanos para aproveitar restos da carne, e
com isso funcionavam como excelentes alarmes contra a aproximação de
feras selvagens e estranhos. Posteriormente, ao invés de seguirem os
caçadores, passaram a precedê-los, tendo percebido que, dessa forma, se
chegava mais rapidamente a origem de seu alimento. Assim, se
converteram em animais úteis, rastreando e localizando a caça. Os
humanos passaram então a alimentá-los, e eles gradativamente foram se
domesticando, provavelmente através de filhotes, capturados e adotados
como companheiros de crianças e mulheres. Lorenz mostra como isto é
factível, tendo adotado um cão selvagem australiano, o dingo, desde o
nascimento, e que acabou se tornando um dos seus cães prediletos, muito
manso.
Que características fizeram com que o cão se tornasse o
primeiro animal selvagem domesticado pelo homem? Lorenz foi o primeiro
a propor a idéia que o cão, sendo um animal altamente social, que vive
em matilhas de dez a 200 animais, comandadas por um chefe, adotou o
homem como seu líder a partir do momento que se domesticou. lnúmeros
comportamentos típicos da espécie comprovam essa hipótese. Um deles é o
abanar horizontal do rabo, que invariavelmente interpretamos como um
sinal de alegria e reconhecimento. Mas não é isso: no seu ambiente
original, é um comportamento de submissão do cão ao seu líder, pois tem
a finalidade de espalhar rapidamente o odor de uma substancia excretada
por uma glândula situada na base do rabo, e que serve para identificar
o cão para seus companheiros. Outro comportamento submissivo é o de se
deitar de barriga para cima e com o pescoço exposto, como que pedindo
cafuné. É um comportamento que assinala a admissão de derrota, em caso
de briga, e tem forte poder inibitório sobre a continuação da mesma. O
mesmo vale para diversos tipos de latidos, que reconhecemos com
facilidade, bem como a postura de ficar de pé, colocando as patas de
encontro ao dono. Este comportamento é igual ao que os cãezinhos usam
para provocar brincadeiras com seus companheiros.
Aliás, outra
teoria do professor Lorenz é que o cão é um animal permanentemente
infantilizado pela convivência com o homem. Ele mantém por toda a vida
as características dos filhotes, que podem ser domesticados com grande
facilidade entre qualquer espécie de canídeos. lsso provavelmente foi
selecionado geneticamente pelo homem, ao favorecer animais menores, com
dentição menos desenvolvida, e comportamento infantil, por
representarem menor ameaça aos seus donos.
A identidade
genética do cão, como espécie separada e criada pelo homem, é
indubitável. Uma serie de mutações genéticas não existe em outros
canídeos. É o caso da cauda falciforme, voltada para cima, ou
enrodilhada; das orelhas caídas, e do focinho achatado (como no
buldogue e no pequinês). Toda a diversidade de raças de cães, que
atinge extremos de tamanho, pelagem e cor, desde o mexicano (sem pelo),
o chihuahua (com 900 gramas de peso) até o São Bernardo e alguns filas
(que podem chegar aos 80 quilos), foi produzida por manipulação
genética pelo próprio homem. A continuidade de todas as raças depende
do entrecruzamento continuado; dai a existência dos pedigrees. Aliás,
existem muitas raças de cães já extintas, como as que existiam na
América do Sul antes da chegada dos europeus.
A identidade
entre homem e cão e tamanha, que até o ex-ministro do trabalho Magri já
afirmou que "o cão é um ser humano como outro qualquer". Muita gente
não tem dúvidas a esse respeito.
Publicado
em: Jornal
Correio
Popular,
Campinas, 2/4/1992.
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