Tatiana Fávaro / Agência Anhangüera
Estudar a estrutura mais complicada do universo é uma tarefa para obstinados.
Mas o desafio de entender a si próprio, de desvendar os mistérios de sua própria origem, de
compreender que um ato simples, como o de olhar, pode estar mergulhado na mais profunda complexidade por envolver
bilhões de neurônios é fascinante, garante o biomédico Renato Sabbatini, professor da
Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e doutor em neurofisiologia pela USP.
Segundo ele, apesar de mais de um século de pesquisa, a Neurociência ainda engatinha. Não pode,
sequer, afirmar com certeza o que há de tão importante nos 2% que diferem nossos cérebros,
humanos, dos cérebros dos chimpanzés. Abaixo, trechos da entrevista:
Como e por que a gente consegue fazer coisas tão complexas em tão
pouco tempo?
É porque o cérebro não é, como muito se diz por aí, um computador: são
100 bilhões de pequenos computadores funcionando em paralelo. Ao mesmo tempo em que um computador cuida
da minha postura, outro trabalha para que eu movimente meus olhos, outro para que meus órgãos internos
funcionem e por aí vai. Se meu cérebro fosse um computador, eu teria que fazer uma coisa de cada
vez e eu seria um organismo tão lento que não conseguiria sobreviver. Então, dizemos que o
sistema nervoso evoluiu como um tecido especializado em sobrevivência.
Quais foram as principais conquistas nessa evolução?
Uma das principais foi o surgimento da neuroimagem funcional, ao meu ver, a grande revolução deste
fim de século. É a possibilidade de fotografar o cérebro funcionando, ver bilhões de
neurônios trabalhando simultaneamente. Isso começou a ser desenvolvido nas décadas de 70, com
a tomografia, e 80, com a ressonância magnética. E é algo fantástico, pois o cérebro
é uma massa composta de água, então o raio-X tradicional, ultra-som, nada disso consegue “pegar”
a estrutura fina do cérebro. Tudo o que você imaginar, desde a parte do cérebro que comanda
um orgasmo até aquela responsável por doenças como depressão, foram analisadas e testadas.
Atualmente já se sabe quais áreas do cérebro estão envolvidas nessas situações.
E saber disso é o primeiro passo para tentar diagnosticar uma patologia ou entender qual é o mecanismo
de determinada ação.
Além da neuroimagem, alguma outra área da Neurociência
teve um salto qualitativo como esse?
Uma outra área que se desenvolveu muito foi a biônica – a substituição de funções
neurais por mecanismos artificiais. Uma retina artificial para fazer cegos enxergarem novamente é objeto
de muitas pesquisas, por exemplo. Além disso, algumas crianças com surdez congênita já
receberam um órgão auditivo artificial. Vão existir no futuro equipamentos implantáveis
para inibir a dor, para fazer funções perdidas voltarem. Essa parte de neuroprótese se desenvolveu
bastante e permitiu curar coisas que eram impossíveis de serem curadas. A doença de Parkinson é
um exemplo. Hoje há um equipamento que você implanta no cérebro, uma espécie de fio
permanente ligado a um marcapasso implantado no tórax, que quando ligado permite a pessoa levar uma vida
normal. Esse aparelho estimula uma zona cerebral que inibe os efeitos da doença. Isso é quase que
milagroso, mas não é uma cura natural.
Também tem se falado muito em substituição de neurônios.
Como isso funcionaria?
A maior parte dos neurônios quando morre não nasce de novo. Desde os 10, 12 anos de idade, a gente
perde alguns milhões de neurônios por dia. Nosso cérebro vai “murchando” e, por isso, o número
de doenças do sistema nervoso é maior a partir dos 70, 80 anos de idade. Como a longevidade da população
é maior hoje, há um risco sério de mais pessoas terem doenças neurais, perda de memória,
esclerose, Alzheimer, Parkinson etc. Então, se a gente puder substituir de alguma forma os neurônios
que morreram será possível impedir o sofrimento e até a morte de algumas pessoas. Principalmente
se descobrirmos a “chave genética” que faz um neurônio se diferenciar, e aí estamos falando
de células-tronco, conseguiremos substituir aqueles neurônios perdidos. Nossa memória e poder
de cognição vão aumentar e poderemos um dia até fazer as pessoas ficarem mais inteligentes
que o normal.
É a genética prometendo progresso para a Neurociência?
A interação com a genética é, na minha opinião, a maior promessa de progresso.
Uma parte muito grande da nossa mente, do nosso sistema nervoso é programada por genes. Estima-se que o
ser humano tenha de 60 mil a 100 mil genes e, provavelmente, 20% desses genes comandam funções cerebrais.
Embora se fale muito no assunto, estamos longe do mapeamento do genoma humano. A ciência concluiu o seqüenciamento
do DNA, que é diferente. O mapeamento é identificar entre os bilhões de seqüências
do DNA quais correspondem aos genes e o que esses genes comandam – o que deve demorar de 20 a 50 anos para ser
feito. Aí sim é que poderemos identificar os genes responsáveis por patologias, desde as grosseiras,
como as doenças genéticas do sistema nervoso central, até desvios de personalidade, como ser
tímido. Isso sem falar nos traços de memória, cognição, capacidade de aprendizado,
emoções, etc. Quem sabe, a partir daí, possamos curar doenças por meio de manipulação
genética? E, se a ética permitir, manipular outros parâmetros, como o QI.
Mas o senhor acha que a humanidade daria esse passo?
No momento em que você conseguir curar uma doença grave, a sociedade vai eliminar as barreiras para
esse tipo de processo. É a minha opinião.
Isso se aplica ao caso das células-tronco?
Sim, a tudo. No momento, existe uma certa barreira em relação ao uso de células-tronco, porque
são tiradas de embriões. Então, os movimentos pró-vida argumentam que são usados
seres vivos para se conseguir essas células. Mas há um número de embriões que vão
morrer de qualquer maneira e terão que ser eliminados das clínicas de fertilidade. Então,
a barreira ética está aí, não no uso da célula-tronco. Mas, vamos supor que
você seja uma pessoa super-religiosa, tenha um caso de Alzheimer na família e saiba que há
uma cura disponível por meio do uso de célula tronco... você hesitaria? Só se fosse
muito radical. Então, essas barreiras vão desaparecer, como já desapareceram em outros casos,
como a fertilização in vitro – um escândalo há 30 e tantos anos. Hoje nascem milhares
de crianças por meio desse processo e ninguém fala mais nada, não existe mais o choque ético.
Qual é o limite?
Eu acho que não tem. Desde que a sociedade absorva essas coisas e não existam aberrações
– do tipo uma ditadura fazer o uso errado da ciência – eu acho que essa flexibilidade ética vai acompanhar
as mudanças científicas.
tfavaro@rac.com.br
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