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A Medicina proibida

Renato Sabbatini

Em setembro de 1998, o Conselho Federal de Medicina, o órgão oficial que regulamenta e fiscaliza a prática profissional da medicina no Brasil, finalmente tomou uma decisão que já se fazia extremamente necessária: proibiu a prática das chamadas medicinas alternativas que não têm fundamentação científica para os procedimentos e resultados que apregoa. A partir de agora, os médicos que utilizarem essas abordagens com seus pacientes poderão ser punidos pelo CFM e até perder a licença para praticar a medicina. Também não poderão associar seus nomes a propagandas desse tipo em qualquer meio. Os médicos sérios ficaram eufóricos com a notícia.

Repercutiu muitissimo em todas faculdades de medicina, associações médicas e no meio médico em geral, em geral com apoio maciço à medida do CFM. Quem não ficou contente, imagino, é a pequena minoria de médicos que receitam Florais de Bach, ou que praticam coisas sem a menor base científica comprovada, como aromaterapia, cromoterapia, iridologia médica, reiki e que tais.

Mas a ação exemplar do CFM foi incompleta e frustrou os que desejam uma postura ainda mais rígida contra a medicina alternativa. A acupuntura, a homeopatia, a fitoterapia e a medicina ortomolecular, três áreas de especialização altamente polêmicas e com uma base científica no mínimo periclitante, ficaram de fora da proibição. Escaparam por pouco; mas acho que o CFM deveria rever também essas especialidades. Infelizmente, o próprio CFM, bem como a Associação Médica Brasileira, já tinham reconhecido há muitos anos a acupuntura e a homeopatia como especialidades exclusivamente médicas, principalmente devido a dois fatores: o grande número de médicos que aderiram a essas práticas, e para impedir sua prática por leigos, não-médicos, e outras especialidades incapazes de fazer um diagnóstico ou de acudir o paciente com os recursos médicos convencionais caso haja algum problema.

Nos Estados Unidos, o National Institutes of Health, o maior centro de pesquisas médicas do mundo, ordenou e financiou uma série de estudos científicos sobre a eficácia das práticas médicas alternativas, em grande parte por pressão de uma parte do Congresso americano, e da população, também, que faz recurso cada vez maior a seus remédios. As conclusões ainda não sào definitivas, mas podem se resumir nas seguintes: 1) a acupuntura funciona em casos muito delimitados de analgesia (combate à dor), mas não é eficaz nem pode ser usada como panacéia para emagrecimento, combate a abuso de drogas, reforço do sistema imune, e cura de várias doenças internas, como úlcera do estômago, problemas reumatológicos, inflamações, etc. (como apregoam muitos acupunturistas). 2) a homeopatia não funciona, pelo menos quando se usa seus princípios de ultra-diluição de medicamentos 3) a fitoterapia funciona em alguns poucos casos onde as plantas usadas têm princípios ativos conhecidos, e em concentração suficiente. A maioria das preparações à base de garrafadas, ervas, etc., não têm nenhum efeito, ou podem ser prejudiciais. 4) para o restante das práticas alternativas, não existem estudos comprobatórios, ou se existem, não funcionam.

A medicina ortomolecular (que atualmente é completada pela expressão "oxidologia médica") é um caso à parte, tanto assim que foi objeto de uma resolução específica por parte do CFM. A medicina ortomolecular se baseia no princípio (cientificamente válido), de que certas doenças podem ser causadas por falta ou excesso de substâncias específicas no organismo. Por exemplo, todo mundo sabe que as vitaminas não são fabricadas no corpo e precisam ser ingeridas a partir de outros alimentos. Se houver uma ingestão insuficiente, podem ocorrer as hipovitaminoses, que causam várias doenças, como escorbuto, raquitismo, cegueira noturna, etc. Tomando-se as vitaminas certas, corrige-se a doença. Esse conhecimento precede de muitas décadas o surgimento da medicina ortomolecular como especialidade, e deu até alguns prêmios Nobel para seus descobridores. É conhecimento médico ortodoxo, portanto.

O que a medicina ortomolecular fez foi expandir esse conceito para os chamados oligoelementos, e adicionar o conceito de que o excesso de alguns elementos também causa doenças (daí o nome ortomolecular). Daí começaram a surgir coisas que já não são tão comprovadas cientificamente. Por exemplo, existe a prática de fazer o exame do fio de cabelo com métodos analíticos poderosos. Procura-se ver se há falta ou excesso de oligoelementos e outros elementos pesados, como zinco, cromo, chumbo, mercúrio, etc. Os resultados são altamente polêmicos, e existem muitas alterações que não têm associações conhecidas com qualquer doença, e não se sabe se precisam ser realmente corrigidas.

A medicina ortomolecular preconiza também o uso de tratamentos hipervitamínicos (megadoses), e a injeção de certas substâncias chamadas "agentes quelantes" para remover do sangue os metais pesados em excesso. O EDTA é um deles, e foi descoberto pela medicina para tratar algumas intoxicações. Aqui o terreno já fica francamente fantasioso. Alguns médicos apregoam que o tratamento semanal com esses agentes rejuvenesce, evita o câncer, combate a velhice, diminui o estresse e outras coisas sem comprovação, e até perigosas. O CFM não proibiu a medicina ortomolecular e até aceitou algumas de suas premissas, mas proibiu a prática e a propaganda desses efeitos mais polêmicos. Vai liquidar muitas práticas médicas extremamente rendosas, que enfiam um tubo nas veias de seus pacientes, uma ou duas vezes por semana, e injetam na circulação misturas com composição desconhecida, que alardeiam fazer todos esses milagres.

Os tratamentos por megadoses de vitaminas também são altamente polêmicos e podem ser muito perigosos (recentemente, as megadoses de vitamina C, preconizadas pelo cientista Linus Pauling para prevenir viroses e câncer, demonstrou-se danificarem células do sangue essenciais para o combate às infecções).

Evidentemente, nenhum seguro médico, que sabe muito bem onde enterra seu dinheiro, paga esse tipo de coisa para seus segurados, portanto é uma das poucas especialidades médicas que têm uma alta porcentagem de pacientes particulares… É claro que também existe muita coisa que não parece funcionar na medicina convencional. Medicamentos contra depressão, por exemplo, têm um efeito pouco maior do que o seria explicado pelo acaso.

Está ocorrendo um grande movimento na medicina dita científica, para rever todos os métodos diagnósticos e terapêuticos em uso, e empregar apenas aqueles que têm embasamento de alta qualidade. Esse movimento se chama "medicina baseada em evidências", e nossas faculdades de medicina estão começando a descobrí-lo e ensiná-lo. É a saida para a confusão que se abate sobre a multiplicidade de correntes médicas, criada pelas alternativas, e que deixa o paciente totalmente indefeso com relação à informação passada para ele por profissionais supostamente autorizados oficialmente a fazê-lo.


 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 19/9/98.

Autor: Email: renato@sabbatini.com
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