Indice de Artigos


Fechando escolas de medicina

Renato Sabbatini

OMinistério da Educação anunciou recentemente, com grande alarde, que estaria contemplando o fechamento sumário de 21 faculdades de medicina, entre as 92 em funcionamento no País. Duas delas já tiveram seu vestibular suspenso no segundo semestre do ano, O motivo: notas D e E no "provão", o exame feito com todos os egressos dessas faculdades. Os problemas apontados pelo Ministério, que, além do exame, também inspeciona as faculdades, são múltiplos: mau nível de ensino, titulação insuficiente dos professores (proporção baixa de docentes com mestrado e doutorado), más bibliotecas, inexistência de hospitais-escola próprios (alguém consegue imaginar como o próprio MEC tenha autorizado o funcionamento de uma faculdade sem hospital?), má distribuição da carga didática, etc.
 
Mas, o pior indicativo é o péssimo desempenho do "produto" dessas escolas, ou seja, o médico recém-formado, que recebe um diploma vitalício, que a ele concede oficialmente virtual poder de vida ou morte sobre os pacientes que cairão sob seus cuidados. Embora tenha ocorrido, em algumas escolas, que os estudantes entregassem a prova em branco, por rebeldia ou incompreensão sobre o papel do "provão" na melhoria do ensino superior brasileiro, o fato é que muitos médicos recém-formados pelas escolas ameaçadas de fechamento realmente tinham nível de conhecimento incompatível com o exercício da profissão. E isso é muito triste... e ameaçador para a população brasileira, e para a própria dignidade da classe médica.
 
A Associação Médica Brasileira, o Conselho Federal de Medicina e outros órgãos de classe e científicos da medicina têm esbravejado contra a abertura de novas escolas médicas e denunciado seguidamente o baixo nível de muitas outras. Em geral, essa luta não tem surtido muitos efeitos. Com a autonomia das universidades particulares, houve uma explosão de criação de novas faculdades, inclusive de medicina. Em Ribeirão Preto, por exemplo,. uma cidade que não precisa de mais médicos (existe lá um médico para 300 habitantes, o que é três vezes mais que o ideal preconizado pela Organização Mundial de Saúde para da faculdades de odontologia, por exemplo, que participam do "provão" há mais tempo do que as de medicina, isso ocorreu: muitas faculdades D e E tomaram vergonha, realizaram mudanças sérias, e incentivaram os alunos a dar o melhor de si no exame. Resultado: mudaram de classificação e foram "salvas". O mesmo deverá acontecer com as faculdades de medicina, acredito.

O que precisa ser feito é cobrar as melhorias, e dar condições para que elas ocorram. Muita coisa pode ser feita: convênios entre as melhores e as piores faculdades, para que estas sejam ajudadas a aumentar seu nível; assessorias de órgãos do governo para a reengenharia educacional e científica das faculdades, o incentivo à melhor formação dos docentes, e até recursos públicos e privados para incrementar a infraestrutura de ensino das faculdades.

Uma coisa que certamente vai ajudar muito será a educação a distância, e a formação de consórcios de cooperação neste uso da tecnologia, para levar "virtualmente" professores de alto nível às faculdades mais remotas e pobres do Brasil. Um deles é a recentemente formada Universidade Virtual Pública Brasileira (http://www.unirede.br). que tem uma excelente proposta de unir cerca de 50 universidades públicas, municipais, estaduais e federais, em uma grande galáxia do ensino a distância, que pretende atingir 200 mil alunos adicionais por ano através de seus cursos, muitos dos quais resultantes da cooperação entre várias instituições. De fato, quando se abolem as barreiras da distância e do tempo, muitas coisas interessantes se tornam possíveis na educação superior. Consórcios semelhantes estão surgindo em áreas específicas, inclusive na Medicina (projeto EduMed).

O Brasil não tem excesso de médicos: muito ao contrário. Existem milhares de municípios sem um médico sequer. O que existe é uma má distribuição, e uma grande pauperização do profissional médico, causada pelo excesso de competição nos grandes centros. Na cidade de São Paulo, já existem alguns convênios de saúde que estão pagando 10 reais por consulta! Esse é o resultado da concorrência predatória entre profissionais mal preparados, dispostos a aceitar qualquer coisa para encontrar trabalho. Enquanto isso, existem municípios distantes e pequenos, que oferecem 6 a 8 mil reais de salário por mês a clínicos gerais, e não conseguem candidatos.

Fechar não é a solução, portanto. Mas é o que pode acontecer se a situação atual não puder ser mudada. Tanto é assim que o ministro Paulo Renato, em entrevista concedida à mídia, confirmou que o governo tem mesmo a intenção de punir exemplarmente algumas escolas recalcitrantes em melhorar, e afirmou que muitas universidades não estariam levando a sério a ameaça.

Em paises mais desenvolvidos, o exame de qualificação pós-curso de graduação é uma exigência e uma realidade há muito tempo. Na Alemanha, por exemplo, onde a qualidade das escolas médicas é absolutamente insuspeita, existe o "provão" eliminatório desde o século pass Porto Seguro de Valinhos, que oferece o currículo colegial no estilo alemão, e recebe inspetores daquele país para realizar o Abitur todos os anos em seus alunos.

A resistância dos alunos egressos dos cursos superiores, notadamente os de medicina, é fruto de uma postura muito própria do brasileiro, que é a de não gostar de ser avaliado. É fruto do subdesenvolvimento, em minha opinião, e também de um corporativismo indesculpável. Esse medo de ser avaliado gera situações absurdas: os advogados, cuja profissão geralmente não envolve risco de vida para os clientes, são avaliados pelo exame da OAB; médicos, não. Deveriam não só passar obrigatoriamente pelo exame pós-curso, como serem obrigados a renovar suas licenças de exercer a profissão periodicamente. Isso se justifica pelo espantoso progresso científico e tecnológico da medicina, que obriga o bom médico a estudar a vida toda para continuar a ser bom. Nos EUA e em muitos outros países, essa revalidação do diploma é obrigatória, e se realiza através da chamada Educação Médica Continuada (EMC).

Já comentei anteriormente nesta coluna que este é exatamente o objetivo de uma nova proposta feita pela Associação Médica Brasileira (AMB), que já começa, a partir de 2001, através de algumas de suas sociedades de especialistas, como a Cardiologia, a exigir os créditos de EMC para que os médicos renovem seus diplomas a cada cinco anos. Evidentemente, esse será um enorme mercado para as escolas médicas, ou seja, criar cursos de EMC para todos os médicos que serão obrigados a fazer a revalidação. A própria AMB estima que cerca de 95.000 médicos estejam nessa sujeitos a essa obrigação (inicialmente a AMB não pensa em obrigar a revalidação do diploma de graduação em medicina, mas apenas o de especialista). Mas, esse número pode aumentar para mais de 200 mil, se o MEC empunhar mais essa bandeira da avaliação. Vai ser o próximo passo para o aperfeiçoamento de todas as classes profissionais que dependem da freqüente atualização do conhecimento e reciclagem, sem dúvida. Mais uma razão para o governo não sair simplesmente fechando as faculdades de medicina, mas sim obrigá-las a se aperfeiçoar cada vez mais e assumir seu papel para capacitar os médicos através da EMC.

Toda vez que se implantou avaliação e reavaliação, a sociedade brasileira saiu ganhando. A CAPES (Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior), uma divisão do MEC, instaurou há muitos anos um sistema de avaliação dos programas de pós-graduação que funciona bem e é muito sério e rigoroso. Apenas esse fato deve ser em grande parte responsável pela qualidade da pós-graduação no País, um fator absolutamente fundamental para o nosso progresso social e material, e para a geração de uma melhor sociedade.

A aviação civil é muito mais responsável do que a classe médica no quesito avaliação. Você gostaria de ter como piloto do avião em que está viajando um piloto maltreinado, malpago e que não conhece direito os comandos do último modelo de aeronave? Certamente não: sua vida estaria correndo perigo. próximo de ser rompido, e as faculdades de medicina serão uma peça importantissima nessa mudança.

Para Saber Mais

Sabbatini, R.M.E.:Eternos estudantes, Correio Popular, 07/08/98.
Sabbatini, R.M.E.:Educando médicos pela Internet. Correio Popular, Caderno Cosmo, 27/8/99.



Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 9/6/2000 e 15/6/2000.

Autor: Email: renato@sabbatini.com

WWW: http://www.sabbatini.com/renato
Jornal:http://www.cosmo.com.br


Copyright © 2000 Correio Popular, Campinas, Brazil