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Cães-robôs e outros bichos

 

Renato Sabbatini

A curiosa polêmica criada pela Cosmo On-Line, que perguntou aos seus leitores se adotariam um cão-robô que está sendo desenvolvido por uma empresa japonesa, tem seus antecedentes históricos.

Tudo começou com um cientista inglês chamado W. Grey Walter, que no final da década dos 40s criou os primeiros "animais" robóticos autônomos, que ele batizou de Elsie e Elmer (ELectroMEchanical Robot, Light-Sensitive). Eram duas "tartarugas", como ele as denominou, a partir de um personagem do livro "Alice no Pais das Maravilhas", e eram bastante simples do ponto de vista eletrônico: tinham três rodas, sendo duas de propulsão e uma de direção, motores elétricos independentes, um fotossensor e um sensor de contato, no topo da carapaça de plástico que as abrigava.



O "computador" de bordo era extremamente simples: um circuito analógico com apenas duas válvulas eletrônicas, que comandava os motores das rodas e de direção a partir da informação dos sensores. As tartarugas "sabiam" fazer apenas duas coisas: evitar obstáculos grandes, recuando quando batiam em algum, e seguir alguma fonte de luz. Quando a fonte de luz era muito intensa, o robô recuava, ao invés de avançar. (em termos comportamentais, Walter criou animais fototrópicos, como as mariposas).

O Dr. Grey Walter era um neurofisiologista (estudioso da função do sistema nervoso) e estava interessado em explorar um modelo eletromecânico dos reflexos simples que todos os organismos possuem. Ele estava convencido que comportamentos complexos e inesperados podem surgir até mesmo em organismos com sistemas nervosos extremamente simples, como era o caso de Elsie e Elmer.

E foi o que aconteceu. A interação entre o "sistema nervoso" das tartarugas-robô de Walter e o ambiente, criava comportamentos inesperados e complexos. Os comportamentos nunca se repetiam exatamente, mas seguiam um padrão, exatamente como em um animal. Por exemplo, Walter construiu uma pequena cabana, onde Elsie podia entrar e recarregar suas baterias. No topo da cabana ele colocou uma lâmpada. Imediatamente notou que as tartarugas vagavam pela sala, mas acabavam procurando a cabana quando suas baterias começavam a ficar mais fracas e se ali se recarregavam, saindo depois para "explorar" o ambiente, à busca de novas fontes de luz. Colocou uma lâmpada no topo de cada tartaruga, e observou o aparecimento de um comportamento social de interação entre ambas, que dançavam uma ao redor da outra, em comportamentos de atração e repulsão que evocavam danças de cortejamento sexual e defesa do território!

Observando isto, Walter escreveu, maravilhado, que "notava-se uma incerteza, aleatoriedade, livre-arbítrio ou independência [que eram] aspectos do comportamento animal e da psicologia humana". E mais: "apesar de serem grosseiras [as tartarugas] davam uma impressão de terem objetivos, independência e espontaneidade." Devido ao comportamento exploratório, especulativo, dos robôs em relação ao ambiente, Walter as considerava uma nova "espécie animal", com o nome científico de Machina speculatrix… Em uma segunda série de experimentos, o cientista criou tartarugas-robôs capazes de aprendizado, que ele mais uma vez batizou com o nome de Machina docilis ("máquina capaz de ser domada"). Ela aprendeu a associar um assobio à uma luz, de tal forma que se comportava como o proverbial cão de Pavlov, buscando o som como se fosse a luz!

Com estes trabalhos, W. Grey Walter passou a ser considerado como um dos pais da cibernética, a nova ciência criada por Norbert Wiener e Warren McCulloch nos EUA, naquela época. Suas tartaruguinhas foram um dos primeiros robôs e um exemplo de uma área que hoje denominados de Vida Artificial, pois era a primeira vez que um ser mecânico exibia propriedades típicas de seres vivos, como comportamento e auto-organização, e foi natural que Walter tivesse obtido uma tremenda atenção por parte da imprensa, causando enormes discussões e interesse. Walter recebeu muitos pedidos de pessoas que queriam adotar Elsie e Elmer, como bichinhos de estimação, e ele mesmo conta que desenvolveu uma certa afeição pelos "animaizinhos", que pareciam ter personalidade própria.

Uma socióloga do MIT, Sherry Turkle, realizou um estudo sobre a ligação emocional que as pessoas sentem em relação a computadores e robôs simplificados, que ela publicou em um livro muito interessante, chamado "The Other Self" (O Outro Eu), Ela chegou à uma conclusão alarmante, para muitas pessoas, de que o ser humano em geral não consegue distinguir emoção real da simulada, mesmo que por uma máquina que ela sabe ser inanimada, e que facilmente se desenvolvem relações de afeto (positivo e negativo) entre máquinas semi-inteligentes e pessoas. Recentemente ela voltou a estudar os tomagotchis, aqueles brinquedinhos que ficaram em moda durante um certo tempo, que exigiam cuidados e "alimentação" constantes por parte de seus donos.

Talvez essas descobertas expliquem a curiosa reação dos leitores à proposta do cão-robô!
 

Para Saber Mais

  1. Walter, W. Grey - A machine that learns. Scientific American, 184(8): 60-63, August 1951.
  2. Walter, W. Grey - An imitation of life. Scientific American, 182(5): 42-45, May 1950.
  3. Walter, W. Grey - The Living Brain, W. W. Norton, New York, 1963.
  4. Sabbatini, R.M.E. - Vida artificial. Correio Popular, Caderno de Informática, 22/07/97
  5. Sabbatini, R.M.E. - Robô não é gente. Correio Popular, Caderno de Informática, 05/08/97.
  6. Sabbatini, R.M.E. - Um robô no seu futuro ?. Correio Popular, Caderno de Informática, 19/09/1995.
  7. Turkle, S. - The Second Self: Computers and the Human Spirit.
  8. Walter's world. New Scientist, 25/7/98.
  9. Machina speculatrix: a história de W. Grey Walter e como reproduzir Elsie usando Lego. URL: http://www.plazaearth.com/usr/gasperi/walter.htm
  10. Holland, O. - The Gray Walter Archive On-Line. University of West England. URL: http://www.uwe.ac.uk/facults/eng/ias/gwonline.html


Renato M.E. Sabbatini é professor e diretor do Núcleo de Informática Biomédica da Universidade Estadual de Campinas, colunista de ciência do Correio Popular, e colunista de informática do Caderno Cosmo. Email: sabbatin@nib.unicamp.br

Veja também: Índice de todos os artigos anteriores de Informática do Dr. Sabbatini no Correio Popular.



Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 29/5/99 .
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