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Medicina Virtual

Renato Sabbatini

Os avanços da informática e das telecomunicações estão colocando os médicos e os conselhos de ética médica em polvorosa. Para entender a razão disso, vou contar um caso real, que ocorreu recentemente na Internet. Um psiquiatra do Canadá oferece aconselhamento psicológico e psicoterapia através da Internet. A coisa funciona assim: o paciente entra em contato com o psiquiatra através do correio eletrônico (preço: 20 dólares por consulta) ou usando uma espécie de "bate-papo" virtual, usando uma câmara de vídeo focalizada sobre ele mesmo. Por meio de um programa chamado CUSeeMe, ele o psiquiatra se visualizam mutuamente, enquanto conversam através de um canal de áudio. O preço, nesse caso, é de 30 dólares por cada meia hora.

Como a Internet é global, qualquer pessoa, de qualquer parte do mundo, que fale inglês, pode solicitar os serviços do doutor canadense. Recentemente, entretanto, ele foi envolvido em um sério problema de ética médica. Um paciente depressivo, com o qual ele estava realizando a primeira "consulta virtual", depois de alguns minutos de conversa, anunciou que a consulta o estava deixando mais desesperado ainda, e que iria cometer suicídio em seguida. Desligou-se da Internet, sem deixar qualquer indicação de quem seria, onde estava, telefone, etc. (em casos similares com pacientes reais, que são bastante comuns, o psiquiatra teria meios de acionar um socorro médico para ir até a casa do paciente, mas isso era impossível naquelas circunstâncias.

Dois meses depois, o médico veio a saber que realmente o paciente teria se suicidado, e que for a achado no computador dele uma transcrição completa do diálogo com o psiquiatra. A família dele estava disposta a acionar o psiquiatra por danos e perdas e erro médico, em alguns milhões de dólares. Detalhe: o paciente era dos EUA. O médico em questão não poderia estar praticando medicina for a de seu estado de residência, e os pais do paciente não tem como processar um médico que não é do seu país.

Esse pequeno exemplo coloca em evidência muitos dos espinhosos problemas envolvidos na mais moderna tecnologia que a medicina tem tido acesso nos últimos anos: a chamada telemedicina, ou a possibilidade de diagnosticar e tratar pacientes à distância, usando redes de computadores. Existem muitos estudos provando que a relação custo-benefício da telemedicina é realmente muito vantajosa (um único médico especialista pode atender locais remotos, carentes de médicos, sem necessidade de viajar) e que pode trazer grandes benefícios em muitos casos.

Os problemas começam a aparecer quando se imagina que todo o arcabouço ético e legal da medicina (que no Brasil é da responsabilidade do Conselho Federal de Medicina e seus conselhos regionais) não contempla os avanços trazidos pela tecnologia da telemedicina. Teoricamente, nenhum médico pode clinicar for a do estado onde obteve seu licenciamento (que no Brasil se chama CRM) e a telemedicina permite isso, tecnicamente. Em segundo lugar, o processo legal em casos de erro médico, violação da ética, confidencialidade do paciente, etc., é muito difícil de ser feito entre dois países (basta se lembrar que nem assaltante inglês de trem-pagador o Brasil é capaz de extraditar, quanto mais um simples processo cível).

O perigo é que os médicos americanos e europeus comecem a utilizar essas omissões e dificuldade com a finalidade de ganhar dinheiro, ao mesmo tempo se esquivando das responsabilidades legais. O Brasil é um enorme mercado para esses médicos, e muitas instituições estrangeiras, pressionadas pela queda de verbas para a saúde e pesquisa (que também acontecem por lá), estão procurando mercados alternativos. Recentemente, uma das maiores seguradoras médicas do Brasil, de propriedade de um grande banco, começou a fazer estudos visando oferecer serviços de "segunda opinião médica" para seus segurados com planos executivos mais caros, utilizando uma conexão de telemedicina com universidades e hospitais famosos dos EUA. Caso o paciente tenha dúvidas sobre o diagnóstico ou tratamento recomendado por médicos brasileiros, credenciados por essa seguradora, ele terá direito a uma consulta por telemedicina com altos especialistas americanos, podendo, inclusive, enviar radiografias, eletrocardiogramas, sua história médica completa, etc., através da Internet.

A Associação Médica Brasileira, da qual faço parte como diretor de Informática, deverá se pronunciar oficialmente dentro em breve a respeito dos problemas éticos e legais trazidos pela iniciativa descrita acima. Não é aceitável que médicos de outros países possam praticar medicina em nosso país sem o necessário licenciamento, mas, ao mesmo tempo, esse é um obstáculo notoriamente difícil de vencer, e que poderá impedir que a telemedicina internacional realmente traga benefícios a pacientes e ao sistema de saúde brasileiro. O conhecimento científico é internacional, e muitos pacientes que podem pagar querem ter acesso a ele. É mais barato para o Brasil pagar uma consulta telemédica do que mandar o paciente para Cleveland ou Nova York, gastando dezenas ou centenas de milhares de dólares.

A ética, a moral e até a religião estão sofrendo o impacto absolutamente revolucionário que essas novas tecnologias estão trazendo. O interesse econômico certamente vai falar mais alto, e antes que a situação fique fora de controle, é necessário que se inicie rapidamente um posicionamento dos legisladores. Alguém em Brasília está pensando sobre isso ?



 
 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 5/11/97

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