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Computador 1 x Humanos 0

Renato Sabbatini

 

Quando o campeão mundial de xadrez, o russo Garry Kasparov, declarou o ano passado que ele tinha "salvo a humanidade" contra a indignidade da derrota de um ser humano por um computador, a frase me pareceu um pouco bombástica e algo arrogante. Bombástica, porque quem já teve a oportunidade de conhecer como funciona o Deep Blue, o programa de computador desenvolvido por um centro de pesquisas da IBM, já sabia que a derrota de Kasparov era questão de tempo. Deep Blue está a caminho de se tornar o campeão absoluto, imbatível por qualquer ser humano, comprovando que, pelo menos em xadrez, é possível fazer uma máquina ser mais "inteligente" que um ser humano. E arrogante, pois eu, como parte da humanidade, não me considerei nem um pouco "salvo" pelo Sr. Kasparov, pois isto implicaria em dar razão ao ego característico dos campeões mundiais, que ele representa o suprassumo do pináculo da evolução mental da espécie…

Como se viu a semana passada, Kasparov não resistiu às melhorias do programa Deep Blue realizadas pela equipe da IBM desde o jogo do ano passado, e pela primeira vez um campeão mundial foi derrotado em condições de torneio. E, afinal, a humanidade venceu, pois foram seres humanos que desenvolveram o programa de computador que levou a esse marcante evento da história da tecnologia.

Como funciona um programa de xadrez ? Ele realmente indica que fomos capaz de dotar um computador de algo semelhante à inteligência humana ? São perguntas que muita gente tem me feito ultimamente.

Bom, em primeiro lugar, é preciso notar que ninguém sabe como funciona a mente de um enxadrista, portanto o termo "Inteligência Artificial" (que é o ramo da computação responsável pelo desenvolvimento das técnicas que permitem a um programa ser capaz de jogar bem um jogo tão complexo e intelectual como o xadrez) é mal utilizado. Não podemos imitar algo que não conhecemos.

Um programa de xadrez utiliza uma técnica denominada heurística (que vem do grego "eureka", ou descoberta), ou seja, ela funciona para atingir certos objetivos, mas provavelmente não tem nada a ver como a mente humana funciona. Desenvolver um programa básico que jogue xadrez é relativamente simples: em primeiro lugar, ele deve "saber" todas as regras do jogo, e ter uma representação interna de um tabuleiro e de suas peças. Em segundo lugar, o programa deve ter uma maneira de gerar as jogadas legalmente possíveis a partir de uma certa posição de tabuleiro. Finalmente, o programa precisa ter um método de avaliação objetiva de quais dessas jogadas são mais vantajosas (por exemplo, se elas tomam uma peça do adversário, ou se conseguem uma vantagem de posição, ou se previnem a tomada de uma peça pelo adversário, e assim por diante). A jogada que tenha o maior efeito vantajoso possível é então escolhida e realizada.

Para aumentar a vantagem estratégica e tática do programa a médio prazo, geralmente procura-se também prever a resposta do adversário e elaborar as contrarespostas, em um nível de profundidade adequado (ou seja, quantas jogadas à frente). Como o número de combinações possíveis é astronômico (são dezenas de milhões de alternativas, em um nível acima de 5 ou 6), quanto mais potente e rápido for o computador, maior será seu grau de sofisticação no jogo, e maior a chance de derrotar um adversário humano. Daí vem a vantagem do Deep Blue. Além de ser um programa, ele também um computador especialmente construído para jogar xadrez, que consta de vários processadores em paralelos, super-rápidos, que podem examinar e descartar cerca de 20 milhões de jogadas por segundo ! Portanto, o Deep Blue, como qualquer outro programa do gênero, utiliza uma abordagem tipo "força bruta", sem as sutilezas e elegâncias do pensamento humano. Uma vantagem é que o computador é totalmente imune às chicanas emocionais e pressões psicológicas de um campeão como Kasparov.

Essa é a "alma" de um programa como o Deep Blue. Claro, existem mil outros truques técnicos que permitem incrementar o desempenho do computador, tais como o armazenamento de aberturas e jogadas padronizadas (ditas "de livro"), a memorização de jogos e erros anteriores, a análise dos vícios estratégicos do adversário. O Deep Blue utiliza todos, mas o importante é a monstruosa capacidade de cálculo, que nenhum ser humano tem (ou utiliza).

De modo que, concluindo, eu não acho que o Deep Blue seja um exemplo de inteligência. É apenas um programa para um propósito específico. Qualquer criança de um ano de idade é mais inteligente que o Deep Blue, no sentido mais geral do termo. É uma maravilha da tecnologia, e um grande feito na história da humanidade, cerca de 35 anos depois que o primeiro programa do tipo foi desenvolvido (por sinal, na própria IBM…). Mas nada mais do que isso.


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 20/05/97.

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