Indice de Artigos

A verdade artificial

Renato M.E. Sabbatini

"You must remember this:
A kiss is still a kiss, a sigh is just a sigh.
The fundamental things apply,
as time goes by"

Estes são os versos imortalizados na lindissima melodia de "As Time Goes By", de Herman Hupfeld, composta em 1931, e cantada por gerações de intérpretes, como Frank Sinatra, Nat King Cole, e outros. Eles nos procuram transmitir a certeza de que as coisas fundamentais permanecem sempre as mesmas, não importa quanto tempo passe. Um beijo é sempre um beijo, um suspiro é apenas um suspiro, e assim por diante.

Muito romântico, mas será que isso continua o mesmo, nesta era de frenéticas e defenestrantes tecnologias ? Parece que não. Algumas das verdades fundamentais em que sempre acreditamos estão sendo literalmente desmontadas pelos novos desenvolvimentos da Informática.

Vejam, por exemplo, a notícia dada pela imprensa sobre uma empresa canadense que, em troca da módica quantia de 80 dólares, modifica qualquer fotografia. Ex-cônjugues são removidos impiedosamente de fotos familiares, os olhos da noivinha assustada com o flash na foto do casamento são abertos e retocados com a cor correta, as rugas do executivo vaidoso são alisadas, tornando-o dez anos mais jovem, etc., etc. O efeito final é impressionante. Ninguém consegue determinar se a imagem é real ou foi fraudada de forma digital. Acontece a mesma coisa com a indústria cinematográfica. São os filmes antigos de "O Gordo e o Magro",colorizados artificialmente, ou "Forrest Gump", que obteve extraordinário sucesso comercial e de crítica, e que recebeu 13 indicações para o Oscar. Gump, retratado pelo ator Tom Hanks, aparece em várias situações históricas, apertando a mão de John Kennedy e falando com ele, dando tapinhas nas costas do presidente Lyndon Johnson, etc. Os efeitos foram obtidos através de novas e revolucionárias técnicas digitais de trabalho com películas, muitas delas disponíveis atualmente em microcomputadores comuns.

A coisa funciona assim: inicialmente, uma foto (ou um quadro de um filme) é convertida em uma representação digital, e armazenada na memória do computador. Equipamentos especiais, denominados scanners, traduzem uma imagem, por mais detalhada e complexa que seja, dividindo-a em milhões de pontinhos coloridos, denominados pixels. Nos equipamentos mais sofisticados, cada pixel tem menos de um centésimo de milímetro, e pode assumir 20 milhões de cores distintas, muitas mais do que o olho humano consegue separar. Uma vez armazenada no computador, a imagem passa a ser uma mera tabela de números, que podem ser manipulados por um sem-número de técnicas matemáticas de processamento de imagens, obtendo efeitos enormemente poderosos. Usando softwares especiais, como o Aldus PhotoStyler SE, e outros, você pode trabalhar com um pixel de cada vez, ou com grupos de pixels, alterando a imagem, e em seguida, imprimindo-a novamente em uma impressora colorida de alta resolução, cujo produto é indistingüivel de uma foto comum. Um exemplo deixa bem claro o que significa essa capacidade: o FBI prendeu um grupo de falsários que pegava cheques legítimos e adquiria sua imagem no computador, usando um scanner colorido de alta resolução. Em seguida, usando um software, apagavam o valor escrito no cheque, pixel por pixel, reconstituindo a cor original de fundo. Imprimiam centenas de cópias desse cheque (que agora estava em branco, mas com a assinatura perfeita), e prenchiam o valor que bem queriam. Segundo o FBI, somente usando um microscópio de alta potência era possível detectar-se a fraude. Qual é a loja do comércio que tem um ?

Esse "corta e cola" de imagens também pode ser feito com sons e vozes, adquiridos digitalmente. É perfeitamente possivel, até mesmo para um contrafator de "fundo de quintal", usando uma placa do tipo Sound Blaster e um programa comuníssimo, como o WaveEdit for Windows, produzir fitas de áudio contendo, por exemplo, um diálogo altamente incriminador de um corruptor qualquer com o presidente da República... Com tudo isso, muitos tribunais americanos e europeus já não estão mais aceitando fotos e gravações de áudio como evidência. É uma tendência inevitável, que logo chegará por aqui, também.

A verdade já não é mais a mesma. Ou, como ainda dizia "As Time Goes By", já não temos mais certeza se:

"And no matter what the progress/Or what may yet be proved/The simple facts of life are such/They cannot be removed/On that you can rely/No matter what the future brings/As time goes by."


Publicado em: Jornal Correio Popular,Caderno de Informática, 28/2/95, Campinas,
Autor: Email: sabbatin@nib.unicamp.br
WWW: http://www.nib.unicamp.br/sabbatin.htm
Jornal: cpopular@cpopular.com.br

Copyright © 1992-1995 Correio Popular, Campinas, Brazil