Indice de artigos

 

Proibindo a verdade

 

Renato Sabbatini

Tristeza e revolta foram os sentimentos predominantes entre os educadores e cientistas de todo mundo, no final da semana passada, com a decisão do Conselho Estadual de Educação de Kansas de eliminar o estudo da teoria da evolução nas escolas públicas do estado. Este é o resultado desastroso de uma estratégia de longo prazo dos cristãos fundamentalistas dos EUA de tomar o poder nos conselhos educacionais de varios estados americanos, com a finalidade de dar status igual à sua fé religiosa na Criação do mundo e do homem, segundo a Bíblia, em relação à teoria científica de Charles Darwin sobre a origem das espécies, que eles consideram uma ameaça à moral, à família e à religião (sic).

Paradoxalmente, isso está acontecendo em um dos países mais ricos do mundo, graças ao seu predomínio insuperável em ciência e tecnologia. Mas os "educadores" de Kansas não pararam por ai. Suas decisões também atingiram também qualquer conhecimento que possa contestar a interpretação literal do Velho Testamento, como por exemplo, as evidências do registro fóssil e geológico (os fundamentalistas acreditam, por exemplo, que o Universo foi criado há exatos 6.996 anos atrás, e portanto refutam a existência de rochas, fósseis e outros registros datados de milhões ou bilhões de anos atrás, em total e absurda oposição ao conhecimento objetivo sobre a história do Universo e da Terra…)

É impressionante (e trágico) que, apesar de todas as esmagadoras comprovações científicas a favor da evolução (uma das teorias científicas mais bem estabelecidas na história intelectual da humanidade), ainda existam pessoas que não acreditem nela. A revolução da genética moderna aprofundou nosso conhecimento de como se dá a evolução e estabeleceu firmemente os mecanismos pelas quais ela se processa, tornando-se um conceito unificador e central em Biologia. Na realidade, a coisa é muito pior: estatísticas recentes feitas nos EUA demonstraram que quase 50% da população daquele país aceita como verdadeira a versão bíblica de que todas as espécies vivas foram criadas simultaneamente por Deus, inclusive o homem, em um determinado momento, e que, portanto a evolução longa e gradativa a partir de ancestrais comuns seria falsa.

O movimento criacionista, como é chamado, tentou inicialmente colocar nos currículos escolares e nos livros didáticos a idéia bíblica da Criação em pé de igualdade com as teorias científicas. Falhou, pois recursos impetrados pelos cientistas e professores nas cortes superiores do país bloquearam a constitucionalidade dessa medida. Agora, voltam à carga tentando eliminar a teoria científica da evolução dos currículos escolares, deixando efetivamente os professores sem o que ensinar a respeito da origem das espécies. Nesse ponto, como mostrou o acontecimento em Kansas, eles têm tido mais sucesso, pois em muitos estados têm maioria nos conselhos educacionais que decidem o conteúdo curricular no ensino primário e secundário. Somente serão repelidos se os defensores da ciência conseguirem neutralizar seus esforços através de campanhas públicas ou tentarem retomar o poder nos conselhos. Caso contrário, será a volta de um obscurantismo sem precedentes desde a época da Inquisição!

Os Estados Unidos parece ser o único país ocidental onde o fundamentalismo religioso cristão é tão militante e parece ter tanta força. Em julho de 1925 ocorreu o famoso "Monkey Trial" (Julgamento do Macaco), na cidade de Dayton, Tennesse, no qual o acusado era um professor secundário de 25 anos de idade, John Scopes, que tinha violado uma lei estadual que proibia o ensino das teorias darwinistas nas escolas públicas. Leis semelhantes estavam sendo passadas em 15 outros estados americanos, marcando uma época de grande conservadorismo religioso, na chamada "Bible Belt" (cinturão da Bíblia), ou seja, estados sulinos e do meio-oeste onde as seitas fundamentalistas predominavam (e ainda predominam, pelo visto. Apesar do escândalo provocado pelo caso Scopes, a legislatura de Tennessee cancelou a lei apenas 38 anos depois…).
 
 
 
John Scopes
 

O julgamento foi simbólico, mas atraiu enorme atenção de toda a mídia na época. Envolveu um formidável embate entre dois dos maiores advogados americanos, Clarence Darrow (um agnóstico, democrata liberal, defensor das liberdades individuais) e Williams Jennings Bryan (três vezes candidato à presidência pelos setores conservadores e fundamentalistas, auto-proclamado cruzado contra o ensino da teoria da evolução nas escolas). Darrow arrasou Bryant e a promotoria, expondo todas as inconsistências da Bíblia, mas mesmo assim Scopes acabou considerado culpado por um júri formado basicamente por fazendeiros brancos de meia idade, e teve que pagar uma multa. O julgamento foi útil para acordar à nação e o mundo para o conflito e serviu para liquidar com as leis em andamento em 13 estados (apenas o Tennessee e o o Mississipi as aprovaram).

Será que teremos que assistir a um julgamento semelhante, quase que no final do milênio da descoberta e do conhecimento? É altamente condenável a insistência da religião organizada nos EUA de impingir a sua fé a uma maioria, violando os preceitos institucionais da separação entre Estado e religião, e as liberdades individuais. Os pais de crianças de outras religiões, ou que não têm religião, são agredidos frontalmente, e têm seus direitos de ensino independente e livre da ciência limitados por um bandinho de fanáticos. Os macacos teriam vergonha de saber que têm descendentes assim…
 

Para Saber Mais

 

Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 20/8/99.

Autor: Email: renato@sabbatini.com

WWW: http://renato.sabbatini.com
Jornal: Email: cpopular@cpopular.com.br
WWW: http://www.cosmo.com.br

Copyright © 1999 Correio Popular, Campinas, Brazil