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A terceira cultura

 

Renato Sabbatini

 
"Ciência é a única coisa que existe de novo. Quando se folheia um jornal ou uma revista, tudo aquilo que é rotulado de "matéria de interesse humano" não passa da velha fórmula do diz-que-disse, a política e a economia seguem sempre os mesmos lamentáveis dramas cíclicos, a moda é uma patética ilusão de novidade, e até mesmo a tecnologia é predizivel, se você conhece a ciência que está por trás dela."
Esta frase, de um intelectual norte-americano chamado Stewart Brands, reflete bem o que eu penso sobre o fato de que os temas científicos se constituem, hoje, em matérias de alto impacto na mídia de massa. Isso é o contrário do que afirmam os auto-proclamados "intelectuais humanistas" ou literatos, que costumam mandar no noticiário cultural da grande imprensa. E isso é fácil de constatar: pegue-se, por exemplo, o caderno dominical Mais!, do jornal "Folha de São Paulo". Ë uma verdadeira salada: coluna social e de futilidades se mistura com artigos de divulgação científica, horóscopo, lista dos livros mais vendidos, e uma infinidade de artigos mais ou menos exóticos e "cabeça" sobre temas literários e de ciências humanas. É patente o enorme desequilíbrio entre temas científicos e literários, aliás: a ciência do Mais! costuma ficar espremida em duas páginas, apenas. Fico me perguntando quem realmente lê esses cartapácios literários, com sua linguagem e densidade erudita apreciadas pelos especialistas, mas que têm interesse apenas marginal para o público geral. Já os temas científicos tratados pelo caderno são palpitantes, quase sempre de alto interesse, e muito bem escritos, com um time de escritores da qualidade de um José Reis, de um Marcelo Glaser e de um Ricardo Bonalume. Infelizmente, fica confinado ao seu pequeno "gueto" no Caderno.

Essa situação não é restrita à "Folha", mas ocorre, com variantes, em quase todos os órgãos da imprensa diária brasileira. Porque os temas científicos, que segundo levantamento feito pelo CNPq, estão entre os que mais interessam ao público geral, têm cobertura tão pequena? Porque ela se restringe a temas geralmente espetaculosos, como a "descoberta" de alguma cura para o câncer ou uma viagem à Marte?

Minha opinião é que isso é devido a um fenômeno caracterizado pela primeira vez pelo cientista e literato britânico Charles P. Snow, em seu livro "As Duas Culturas", publicado em 1959. A primeira cultura a que ele se refere é a do mundo dos literatos e intelectuais humanistas ou clássicos. A segunda é a dos cientistas, do conhecimento científico. Snow observou, com espanto, que esses dois mundos praticamente não se comunicam entre si, além de se desprezarem mutuamente.

Em uma segunda edição do livro, em 1963, Snow propôs, em um novo ensaio, chamado "As Duas Culturas: Uma Segunda Visão", a necessidade de surgir uma "terceira cultura", que seria formada dos literatos ou humanistas com um bom conhecimento de ciência, e que poderiam fazer a ponte entre as duas outras culturas. O interessante é que não foi isso que aconteceu de lá para cá. O pessoal da literatura, artes e ciências humanas continua tão ignorante quanto antes sobre a ciência e seu impacto sobre aspectos que lhe são caros. Portanto, como disse o escritor John Brockman, em seu livro "A Terceira Cultura",
 

"Os intelectuais tradicionais são cada vez mais reacionários, no sentido de que muitas vezes se orgulham (perversamente) de sua ignorância acerca das mais significativas realizações científicas do nosso tempo. Sua cultura, que despreza a ciência, é muitas vezes não-empírica. Ela usa seu próprio jargão e é caracterizada tipicamente por comentários sobre comentários sobre comentários, em uma espiral crescente que atinge um ponto tal, que toda a perspectiva em relação ao mundo real se perde."
Qualquer pessoa, mesmo sendo leiga em ciência, percebe que esse mundinho viciado a que se refere Brockman não tem nada a oferecer de novo há muito tempo, e que o que realmente está mudando o mundo é a ciência e a tecnologia. Mesmo sem querer, a imprensa não tem deixado de notar que as descobertas e invenções revolucionárias e em ritmo de crescimento exponencial, feitas na área de genética e biologia molecular (como a clonagem e os seres transgênicos), da cosmologia e da exploração espacial, da biodiversidade, da informática e da microeletrônica, da realidade virtual e da Internet, e muitas outras, dominam os olhares da humanidade. Devido à omissão dos humanistas, no entanto, a coisa está correndo solta, e os aspectos éticos, sociais e econômicos de todas essas novidades, da avaliação de seu impacto futuro sobre nossas vidas e sobre a sociedade, não têm merecido a necessária atenção por aqueles que, justamente, estariam capacitados a debatê-los. Não estão, eu diria, por seu profundo desconhecimento dos temas científicos mais avançados e de sua significação para tantos aspectos de nossas vidas.

Por outro lado, a segunda cultura, a dos cientistas, também tem uma série de deficiências. Predomina um exagerado "cientificismo", uma crença quase religiosa nos poderes do método científico, e um acentuado reducionismo, ou seja, um entendimento do mundo que é limitado pelos próprios métodos analíticos que a ciência precisa usar para funcionar efetivamente. Os cientistas também têm ojeriza, ou medo, de se comunicarem com o grande público, com raras exceções. Esta omissão os coloca em desvantagem em relação à primeira cultura, que é feita primariamente de comunicadores por profissão e vocação. Isso é uma infelicidade, pois o papel básico de um intelectual é duplo: aprender, primeiro, comunicar em seguida. Os intelectuais são responsáveis não somente por criar o conhecimento e avaliá-lo criticamente, mas também por modelar e influenciar o pensamento das grandes massas. Pensar em público é absolutamente necessário, portanto, e o cientista e o intelectual que se omitem disso estão traindo sua própria missão.

Brockman defende a tese de que a terceira cultura existe, sim, mas ela é formada por cientistas que são capazes de se comunicar com grandes audiências. São pessoas do calibre de Carl Sagan, Roger Penrose, Paul Davies, Michio Kaku, Stephen Jay Gould, Richard Dawkins, Lynn Margulies, Edward O. Wilson, Steven Pinker, Daniel C. Dennett, Oliver Sacks e Marvin Minsky. A série "Cosmos", de Sagan, foi assistida com fascinação por centenas de milhões de pessoas, na década passada. Pode-se dizer a mesma coisa de algum grande intelectual humanista recente?

Seria muito interessante, e um grande progresso, se a terceira cultura também pudesse se beneficiar da intervenção intelectual dos humanistas. Um aliado potencial nesse campo é o jornalista científico. Tradicionalmente o jornalismo é uma profissão de formação nas ciências humanas, mas cada vez mais jovens jornalistas que gostam de ciência estão querendo se aprofundar nessa área e se dedicar a este tipo de atividade. Para isso, é extremamente necessário que eles adquiram uma boa formação científica, pelo menos em nível de conhecimento, na área ou áreas que pretendem cobrir. Embora sempre haja entre eles um claro "handicap", pois não têm, e dificilmente terão, a vivência do laboratório de pesquisa, é um elemento importante no grande esforço multidisciplinar que é o jornalismo científico.
 

Para Saber Mais

 

Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 21/5/1999 .

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