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A Rede Globo e o Psicopata

 

Renato Sabbatini

 

O programa “Fantástico” levado ao ar pela Rede Globo de Televisão no domingo passado, dia 22 de novembro, marcou um novo recorde de baixaria disfarçada de ciência na televisão brasileira. Seguindo uma orientação sensacionalista, misturada com esoterismo barato e uma total quebra das normas éticas de uma mídia que se diz responsável (mas que cada vez mais cede aos apelos ibopeanos ditados por essa aberração que se chama “Ratinho”), a matéria entrevistou  Francisco Pereira, o confesso “Maníaco do Parque”, que assassinou com requintes de crueldade e aberração psíquica um número estimado de 12 jovens mulheres em São Paulo.

Os equívocos e violações da ética começam pelo fato de terem entrevistado um réu já avaliado pelos psiquiatras como sendo “semi-imputável”, designação classicamente reservada para os sociopatas acusados de crimes violentos. É uma classificação bastante estranha, cientifica e juridicamente, pois diz que o paciente examinado é louco mas também não é. Em outras palavras, ele pode ter cometido seus crimes sob influência da doença mental, mas estava plenamente consciente da natureza e da conseqüência de seus atos, e portanto é parcialmente responsável por eles. A decisão do júri é baseada em grande parte no testemunho desses especialistas, pois se o réu é insano, ele não pode ser condenado à prisão comum; recebe uma pena indeterminada e fica confinado no manicômio judiciário até que novos exames o considerem “curado” e não representando mais nenhuma ameaça à sociedade. Se ele não é insano, fica sujeito ao código penal, e poderá ser condenado a uma sucessão de penas máximas em presídio comum. Onde ficará Francisco?

O programa da rede Globo foi simplesmente obsceno. Colocou um astrólogo dizendo obviedades sobre o maniaco, e que impressionaram pela sua precisão e coincidências com a história do rapaz. Lógico: a não ser que o tal astrólogo tivesse vivido no fundo de uma caverna isolada da sociedade nos últimos seis meses, é impossível que ele não soubesse dados e detalhes sobre a personalidade de Francisco, divulgadas à náusea pela imprensa brasileira. Assim até eu acerto, sem saber nada de astrologia.... É patético e vergonhoso  (e o pior que tem muita gente que acreditou). O programa também colocou uma “sensitiva” ou médium (que deveria ter desconfiado alguma coisa ao ser levada ao Parque do Estado para “sentir” influências malignas alí presentes) e que colocou toda a culpa dos crimes em uma poderosa “entidade” que teria habitado o corpo do coitadinho do maníaco. Nesse passo, ele será absolvido de tudo, com certeza.

Fazendo extenso uso de manipulações dos fatos, através de superposição de imagens e de seqüências de “deixas” verbais, o repórter (que caiu verticalmente no meu conceito depois desse trabalho) tenta dar a impressão que há uma extrema coincidência entre o que o entrevistado fala (espíritos malignos, etc.) e o que os astrologistas e a sensitiva declararam. Como se isso fosse prova de alguma coisa!. É um dos piores exemplos que eu já vi na TV brasileira de manipulação de fatos para comprovar uma hipótese (sensacionalista) que está somente na cabeça do jornalista, e com finalidades mais do que evidentes. A parte científica da reportagem, que poderia ser muito boa, fica por conta de breves intervenções por um psiquiatra. A armadilha montada para enganar o telespectador ficou completa.

Já tive a oportunidade de escrever três vezes aqui no Correio Popular sobre as motivações, a mente e o cérebro dos sociopatas (que é a designação mais correta para os psicopatas. “Maníaco”, então, é um termo totalmente sem sentido neste contexto, embora seja muito usado). Vocês podem reler meus artigos na Internet (www.epub.org.br/correio/medicina), bem como um artigo científico mais extenso intitulado “O Cérebro do Psicopata”, publicado no último número da revista eletrônica da UNICAMP, “Cérebro & Mente” (www.epub.org.br/cm). Ali vocês vão ver que o sociopata é extremamente ardiloso em querer colocar a culpa de seus crimes em outras pessoas, nas vítimas, e em supostas influências malignas. No mundo todo, as autoridades judiciais não deixam que seus argumentos cheguem em viva voz até a opinião pública e as entrevistas com eles são proibidas (quem será que deixou, no caso da Globo?), ainda mais quando eles ainda não foram julgados.

O sociopata tem orgulho dos crimes que ele cometeu, pois essa desordem de personalidade se caracteriza por um desprezo total e completo em relação à vida humana, frieza e falta de culpa em relação aos seus crimes antissociais, um narcisismo patológico e um orgulho de ser um “predador”. O sociopata violento não tem cura conhecida, e tem que ser trancafiado pelo resto da vida na cadeia, pois ao sair terá exatamente a mesma compulsão de realizar seus crimes.

O que a Globo fez foi triplamente condenável. Ela deu voz aos delírios do sociopata, arrumou justificativas esotéricas para sua personalidade criminosa e negou aos telespectadores o acesso às evidências científicas sérias a respeito das bases neurobiológicas e psicológicas que estão por trás dos seus crimes aberrantes. E o pior: tudo isso transmitido em pleno horário nobre, com milhões de crianças assistindo a cenas e a depoimentos barbarizantes.

A sociedade precisa protestar, se levantar na condenação desse tipo de coisa, que transforma a TV, um meio excelente para debater e educar, em um veículo nocivo e repulsivo.
 

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Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  27/11/98.

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