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O
Homem Universal
Renato
Sabbatini
A
explosão do conhecimento científico que caracteriza a era moderna
acabou eliminando de maneira definitiva uma figura muito interessante:
o Homem Universal, nascido no Renascimento italiano, quinhentos anos
atrás, e que foi tipificado pelo célebre Leonardo da Vinci.
Como
todo mundo sabe, Leonardo era genial em tudo o que fazia. Ele foi
cientista, botânico, alquimista, geólogo, geógrafo, arquiteto, engenheiro, inventor, físico, anatomista,
alquimista escultor e pintor. É uma de minhas personalidades prediletas, devido
ao seu experimentalismo e curiosidade insaciáveis, ao seu pioneirismo
impressionante e misterioso; e ao humanismo, que o permitia unir de
forma indivisível as artes às ciências (considero um dos pontos altos
de minha vida ter podido visitar, no maravilhoso Palazzo Vecchio de
Florença, a primeira exposição publica dos seus cadernos de desenhos
anatômicos, recém-descobertos na Espanha, em 1978).
Curiosamente,
entretanto, Leonardo não era considerado por seus contemporâneos como
sendo o mais genial dos homens universais. Este reconhecimento foi
concedido ao notável genovês e padre católico Leon Battista Alberti
(1404-1472), cuja
modesta divisa era: "Um homem pode fazer tudo o que quiser". E ele
podia, realmente, a julgar por sua biografia. Embora seja mais
conhecido como o arquiteto que projetou a fachada da belíssima igreja
Santa Maria Novella, em Florença, Alberti era excelente em uma
variedade espantosa de assuntos, sobre os quais escreveu diversos
tratados: teologia, política, filosofia, linguistica, literatura,
poesia, música, arte,
arquitetura, matemática, engenharia, cartografia, ciência, etc. Por
exemplo, seu tratado de dez volumes
sobre arquitetura, publicado em 1485, foi traduzido para todas as
línguas européias e continuou a ser lido, consultado e utilizado em
cursos até o século passado. Alberti influenciou enormemente a arte
renascentista, ao fazer o primeiro estudo teórico da perspectiva, e
revolucionou a criptografia, tendo inventado o primeiro código
multialfabético e a primeira máquina criptográfica. Suas obras poéticas
são consideradas
comparáveis às de Dante e Ariosto, e era também um excelente
compositor e organista. Além disso, era um homem de extraordinário
vigor físico e
dedicação aos esportes (era competente arqueiro e cavaleiro nas horas
vagas e seu hobby era domar cavalos selvagens!). Para
terminar, era rico e bonito.
O
que tornou possível o aparecimento do Homem Universal por um período de
tempo tão breve na historia? Em 1860, o historiador suíço Jacob
Burkhardt deu a seguinte explicação, que e a mais aceita atualmente: a
libertação intelectual que se seguiu ao final da Idade Media permitiu
que as pessoas se desenvolvessem pela primeira vez como indivíduos, e
não como membros de castas e grupos, dominados por dogmas e ideologias
rígidas (principalmente pela Igreja). Por pouquíssimo tempo, antes que
começasse a tremenda expansão das artes e das ciências no Ocidente,
detonada pelo próprio Renascimento, foi possível, para uns poucos
homens, dominar todo o conhecimento então existente.
Portanto,
embora existam atualmente muito mais pessoas com QI semelhante, ou até
maior do que os de Leonardo e Alberti (imaginem a probabilidade deles
terem aparecido na minúscula população da Itália de então), o fato é
que é impossível aparecer outro Homem Universal. Quando eu tinha 13
anos, ao ler a biografia de Leonardo da Vinci pela primeira vez,
acalentei a ingênua idéia de sê-lo, um dia. Doce engano, que não
demorou mais que alguns anos para ser desfeito...
Infelizmente,
a especialização se tornou uma necessidade imperativa. Não deixa de ser
melancólico constatar essa realidade, pois, mais do que nunca, a
Humanidade precisa de homens com visão ampla para nos ajudar a sair dos
atoleiros morais e científicos em que esta metida.
Publicado
em: Jornal
Correio
Popular,
Campinas, 16/12/1993.
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