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Ciência e agosto

Renato Sabbatini

Chega o mês de agosto, e mais uma vez o Brasil se encontra à beira do abismo político e institucional. Para o povo, parece se confirmar plenamente o "inferno astral" do nosso pobre País, que já sofreu diversos azares neste mês: o suicídio de Getulio Vargas e a renúncia de Jânio Quadros são os mais lembrados.

Os astrólogos “explicam”: o inferno astral corresponde ao mês anterior ao do nascimento. Como o Brasil surgiu como nação independente em 7 de setembro, então agosto seria eternamente o mês de azar para o nosso já normalmente azarado País (o que os astrólogos não explicam é por que outros infortúnios nacionais, como a morte de Tancredo Neves, revoluções, etc., parecem se distribuir de forma homogênea por todos os períodos do ano...). A má fama de agosto também é aumentada pela crença no “mês do cachorro louco", ou seja, supostamente haveria um aumento da incidência da raiva transmitida pela espécie canina.

Embora muitos cientistas não queiram admitir, algumas superstições e crendices populares têm certa base, mesmo que tênue, em fatos reais acontecidos há muito tempo. Acabam se perpetuando através de gerações e até de povos diferentes, perdendo qualquer relação com o evento que lhes deu origem. É o caso do azar de agosto. No tempo dos romanos, era geralmente neste mês, o mais quente do ano, que começavam a ocorrer as grandes epidemias. A mortalidade aumentava muito, geralmente devido a causas desconhecidas pela precária ciência médica de então, e fomentada pelas más condições sanitárias. Os que tinham dinheiro tratavam de escapar para o campo, deixando os miasmas liquidarem com a população menos aquinhoada na mega-metrópole romana de então. Dai, talvez, tenha surgido o conceito das escapistas férias de verão, o famoso “Ferragosto”, italiano, que literalmente paralisam o país de alto a baixo, até hoje.

A malária, por exemplo, (palavra que significa “mau ar", em latim, pois os romanos acreditavam que ela era devida ao mau cheiro gerado pelos pântanos que cercavam Roma), atacava mais nessa época. Coincidência? Não! O que eles não sabiam é que os mosquitos, vetores da doença, se multiplicavam mais no verão. Evidentemente, se agosto era realmente um mês de maus presságios para os habitantes da bota italiana, há muitos séculos, o mesmo não se aplica mais aos tempos atuais. E, muito menos, para um país em que agosto é um mês do inverno!

Quanto a suspeita de que agosto tenha uma maior incidência de raiva, já se aventou a hipótese de que isso seria devido ao fato de que as cadelas entrariam em cio nesse mês, aumentando o contato entre os cães de rua, provocando mais brigas e favorecendo, com isso, a propagação do processo infeccioso na população canina. Embora pareça ser um argumento com certa lógica, ela não tem fundamento científico. As cadelas domésticas, ao contrário das selvagens, não têm uma estação fixa do ano para entrarem no cio. Normalmente isso acontece dc seis em seis meses, e o padrão é bastante regular para uma cadela jovem, mas não parece existir sincronização estral, como em outros mamíferos. Os canídeos selvagens (como a raposa, que é um importante reservatório silvestre do vírus da raiva no hemisfério norte) normalmente entram em estro no outono (setembro/outubro), o que explicaria, isso sim, uma variação sazonal da raiva naqueles países. No Brasil, entretanto, não existem praticamente canídeos selvagens, e nosso outono é no primeiro semestre.

Notem como a superstição, uma vez instalada, não conhece nem respeita contra-argumentos.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 27/8/92.

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