Um visionário medieval
Renato Sabbatini
Há
exatamente 700 anos, em 1292, morria na Inglaterra um filósofo,
cientista e frei franciscano, Roger Bacon. Algumas vezes confundido com
seu homônimo, também filósofo da ciência, Sir Francis Bacon (que viveu
no Século XVII), Frei Roger Bacon acabou ficando esquecido no tempo,
tendo sido injustamente relegado a um lugar secundário na historia da
Ciência. Entretanto, Bacon foi um homem fascinante, muito à frente de
seu tempo, e teve grande influência intelectual no desenvolvimento da
ciência moderna. Em alguns aspectos, ele é comparado ao genial Leonardo
da Vinci, que foi uma das figuras maiores do Renascimento.
Bacon
era um visionário e futurologista impressionante. Por exemplo, ele
previu, em 1245, que a Ciência desenvolveria submarinos, máquinas de
voar e veículos motorizados, e até fez alguns projetos, como Leonardo.
Outro aspecto em que Roger Bacon manifestou sua genialidade foi o de
proclamar o valor da experimentação no método cientifico. Bacon era um
experimentalista incorrigível. Gastou muito tempo, esforço e dinheiro
montando um laboratório particular onde realizava experiências de
alquimia (a química da época, eminentemente prática e
experimentalista), ótica e astronomia.
Ele foi o primeiro
europeu a escrever minuciosamente sobre o processo de fabricação da
pólvora, descoberto pelos chineses, e a especular sobre suas aplicações
na guerra e na paz (cerca de cem anos antes delas se realizarem).
Provavelmente, foi também o inventor do telescópio, pois descobriu
muitos princípios da ótica, baseando se em trabalhos de cientistas
árabes, e fabricou lentes convexas de vidro. Tudo isso muito antes de
Galileu e Van Leeuwenhoek, os inventores historicamente consagrados do
telescópio e do microscópio.
Além de tudo isso, Bacon era um
grande matemático. Como professor em Oxford, a mais prestigiosa
universidade inglesa da época, foi um precursor da ciência moderna, que
se desenvolveria plenamente somente 300 anos depois, além de um grande
reformador educacional. Devido ao seu espírito irrequieto, enérgico,
inventivo e perspicaz, era chamado de doctor mirabilis
(professor maravilhoso) por seus contemporâneos. Seus experimentos
científicos eram conhecidos e comentados em todo o mundo medieval, e
ele acabou ganhando até certa fama popular (talvez tenha sido o
primeiro cientista a ser conhecido pelo grande publico).
No
fim, essas características de personalidade acabaram por causar-lhe
grandes problemas. Em 1257, ele ingressou na ordem dos franciscanos e
imediatamente começou a ser reprimido e censurado pelas autoridades
eclesiásticas. Não devemos nos esquecer que as universidades da época
eram exclusivamente teológicas, que todo o conhecimento cientifico se
baseava em Aristóteles, e que os principais métodos de busca do saber
eram a especulação e a citação de autoridades. Ao propor que a
experimentação metódica com a Natureza poderia desvendar as leis que a
regem (e Bacon foi o primeiro a propor o conceito de lei natural),
desagradou a religião estabelecida, por dois motivos: primeiro que
essas leis naturais poderiam contrariar as leis divinas e os dogmas
expressos nas Escrituras, o que era anátema e sacrilégio (Giordano
Bruno foi para a fogueira por muito menos); segundo, que o
experimentalismo era coisa de infiéis e anticristos (a ciência objetiva
e a matemática da época eram dominadas quase que inteiramente pelos
árabes, que não sofriam essa espécie de conflito com a religião deles).
Outro problema com a Igreja era que Bacon era um fervoroso
critico dos métodos educacionais da época (a educação estava
inteiramente na mão dos religiosos). Ele argumentava que o
desenvolvimento da filosofia natural e um conhecimento mais amplo da
obra de Deus só poderiam acontecer com a inclusão da ciência e do
método experimental nos currículos universitários (notem como ele foi
profético nessa convicção). Para isso, propôs o estabelecimento de um
instituto papal, com centenas de intelectuais, que se dedicariam a
elaborar uma grande enciclopédia, classificando e sistematizando todo o
conhecimento humano da época sobre a Natureza (Communia Naturalium) e sobre a Matemática (Communia Mathematica).
Parte dessa obra acabou sendo escrita secretamente por Bacon, por ordem
do Papa Clemente IV, que era seu protetor. Quando Clemente morreu,
entretanto, Bacon teve que renunciar ao seu sonho e acabou sendo preso
por ordem de São Boaventura, o superior dos franciscanos na época.
Até o final de sua vida, Roger Bacon criticou agressivamente e lutou contra o establishment intelectual
da época, tendo jamais renunciado as suas idéias ou se dobrado a
autoridade reacionária. Suas visões se concretizaram muitos séculos
depois. O escritor George Bernard Shaw escreveu uma vez que “os homens
razoáveis tentam se adaptar ao mundo, enquanto que os homens pouco
razoáveis tentam adaptar o mundo a eles. Por tanto, todo o progresso
humano é realizado por homens não razoáveis!".
Roger Bacon é um exemplo para todos nós.
Publicado
em: Jornal
Correio
Popular,
Campinas, 19/3/1992.
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