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Tecnologias adequadas

Renato Sabbatini

Recebi de uma amiga, por correio eletrônico, a seguinte historinha:
"Quando a NASA começou a mandar astronautas para o espaço, rapidamente descobriu que as canetas esferográficas não escreviam em gravidade zero. Para combater este problema, os cientistas da NASA gastaram uma década e 1,2 milhões de dólares para desenvolver uma caneta que escrevesse em gravidade zero, de cabeça pra baixo, debaixo d´água, em qualquer superficie, incluindo vidro, e a temperaturas que fossem desde o negativo até aos 300C... Os russos? Simplesmente usaram um lápis."
É uma lição de simplicidade? De preocupação com os custos? Ou de falta de recursos? Acredito que é mais do que isso: o episódio (se for verdadeiro) mostra que nem sempre as tecnologias mais caras e modernas são as mais adequadas. Essa reflexão é importante em maiss situações do que somos capazes de imaginar.

No Brasil, temos a péssima tendência de copiar as tecnologias mais avançadas dos países desenvolvidos, sem levar em conta o contexto cultural e histórico, os custos, e a capacidade que os usuários vão ter de utilizá-la. O resultado é que muitas vezes passamos literalmente do carro-de-boi ao Boeing, sem nunca termos usado as tecnologias intermediárias, que podem ser tão efetivas quanto as mais sofisticadas e modernas.

O famoso inventor Thomas Alva Edison, que era um gênio prático (nunca fez nenhuma faculdade de engenharia, mas revolucionou a humanidade com suas descobertas, e fundou a empresa General Electric e várias outras para explorar comercialmente seus inventos), desenvolvou um teste interessante para selecionar os engenheiros que queria contratar para seu laboratório. Quando um novo candidato se apresentava, Edison dava-lhe uma lâmpada incandescente ao rapaz e pedia que calculasse o seu volume interno. Ora, a lâmpada, como todos sabem, tem uma forma bastante complexa. O coitado do engenheiro ficava horas e horas às voltas com paquímetros (régua de alta precisão), calibres, fórmulas matemáticas e calculadora, e, depois de muito suar, apresentava o resultado a Edison. Ele então abria a lâmpada, enchia-a de água e derramava em uma proveta calibrada. Quase sempre o engenheiro tinha errado…

Outro exemplo edificante: quando a Xerox começou a fabricar máquinas fotocopiadoras na India, ela logo quis fabricar os modelos mais avançados, que tinham separadora automática de cópias múltiplas (classificadora). O governo indiano proibiu. O motivo: uma máquina fotocopiadora manual dava emprego para três pessoas. A máquina automática dava emprego para apenas uma. A Xerox, evidentemente, não gostou nem um pouco, pois as máquinas automáticas eram muito mais caras. Mas ela não tinha entendido o contexto cultural e demográfico da India. Imaginava, provavelmente, que as coisas por lá eram como nos EUA, onde a mão-de-obra para este tipo de coisa é muito cara, justificando-se, portanto, a sua substituição por máquinas.

Quando vou para os EUA, eu freqüentemente uso uma dessas lojas que oferecem toda espécie de serviços de fotocópia, fotografia, uso de computadores, impressoras, etc.; como se fosse um escritório sucedâneo para quem está longe de sua base. Ficava perto do meu hotel, e era ótima. Notei, no entanto, que mesmo nos horários de pico a loja inteira era atendida e operada por um único funcionário. Era tudo automatizado. Isso no Brasil seria uma novidade muito apreciada, mas meio sem sentido, frente ao nosso índice de desemprego.

Notem bem: não sou inimigo da modernização, da automatização e de tudo que a tecnologia traz. Já passou a época dos luditas (assim chamados porque eram liderados por um certo Mr John Ludd, que comandou uma revolta dos tecelões manuais contra os fabricantes que usavam teares semi-automáticos de Jacquard, no século XVIII). Existem tendências que são irresistíveis, a médio e a longo prazo. Mas acontece que temos que ter bom senso. A história da caneta da NASA é ótima e mostra uma característica bem americana. Nesse exato momento em que escrevo eles estão jogando centenas de milhões de dólares de equipamentos militares contra um dos povos mais atrasados do mundo. Um míssil cruzador custa dois milhões de dólares, o mesmo que um hospital de 50 leitos totalmente equipado, ou 20 centros de saúde, ou duas escolas para 1500 alunos. Já gastaram uns 60, que corresponde a um terço do PIB do Afeganistão… E, pelo que dizem as notícias, sem grandes efeitos práticos, pois, evidentemente, é uma tecnologia inadequada. Parece que eles não aprenderam a lição do Vietnã, ou dos próprios soviéticos no Afeganistão.
 
Nas áreas de educação, agricultura e saúde, é absolutamente essencial saber avaliar quais são as tecnologias mais adequadas e econômicas para realizar eficientemente uma determinada tarefa. Os agentes comunitários de saúde primária são um bom exemplo. Inventados pelos chineses, aperfeiçoados pelos cubanos e adotados mais recentemente no Brasil, revelaram ter um enorme impacto sobre a melhoria dos índices de saúde da população pobre, muito mais do que construir um número grande de hospitais e postos de saúde carissimos. Equipados com um kit básico, que inclui uma bicicleta, uma capa de chuva, e uma bolsa com os medicamentos essenciais, são baratos e têm a vantagem de se integrarem na comunidade de que fazem parte, humanizando e personalizando a assistência.

Infelizmente existem poucos centros de estudos dedicados às tecnologias sociais adequadas no Brasil. Sua disseminação teria uma grande utilidade para definir onde o governo e a sociedade devem aplicar dinheiro, em áreas críticas, para otimizar os resultados.

P.S.: Embora as invenções necessárias para a exploração espacial tenham custado quantias ridiculamente altas de dinheiro, o fato é que a tecnologia não espacial se beneficiou muito dessas invenções. Entre elas: processamento digital de imagens médicas, antenas de TV por satélite, botas de esqui, código de barras para identificação, equipamento para combate ao fogo, controladores de joystick para videogames, material cerâmico para próteses dentárias, revestimento para óculos de sol, aspirador de pó portátil, e.... canetas espaciais.

Quanto à historinha da NASA no começo deste artigo, é apenas parcialmente verdadeira. O fabricante Fisher realmente gastou 1,2 milhões de dólares em 1965 para pesquisar e desenvolver uma caneta esferográfica contendo um compartimento pressurizado de tinta, mas não foi a NASA que pediu. Os primeiros astronautas americanos usaram lápis, como os russos. Depois Fisher vendeu 500 canetas à NASA por US$ 2.50 cada. Como a caneta é ótima, desde então todos os astronautas (inclusive os russos, a bordo do MIR), têm usado a Fisher Space Pen. Um detalhe curioso: qualquer pessoa atualmente pode comprar réplicas exatas e funcionantes da famosa Vector Fisher Space Pen usada pelos astronautas, por apenas US$ 29.95.
 

Para Saber Mais

The Write Stuff: The Legend of the Space Pen
 

Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  9/11/2001.

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